Belém doce Belém

Na 12ª entrevista da série "Belém 400 anos", Maria Sylvia Nunes revisita suas memórias.

06/10/2014 10:28 / Por: Bruna Valle/ Fotos: Dudu Maroja
Belém doce Belém


Advogada, autodidata, professora aposentada pela Universidade Federal do Pará, ícone do teatro paraense e verdadeira aficionada por arte e cultura, Maria Sylvia Nunes integra a série “Belém 400 anos” com nostalgia e o anseio de ver Belém voltar no tempo, ao que era: uma cidade tranquila e afável para ela.
Nascida e criada na cidade morena, ela lembra dos tempos em que morava no bairro de Nazaré, de onde via as senhoras colocarem suas conversas em dia reunidas na frente de suas casas. Recorda das ruas por onde passava depois do baile na Assembleia Paraense, madrugada afora com suas irmãs e seu pai, que sempre as acompanhava. E dos momentos descontraídos com os amigos de faculdade, andando por aí, sem pressa de chegar e nenhum medo de vagar na rua.

Aos 84 anos, Maria Sylvia Nunes é só amor por sua terra natal, que, mesmo com seus problemas, nunca deixou de ser seu ponto de referência, aonde quer que fosse. Com um carinho especial, ela acredita e deseja um futuro mais sereno para Belém. Que as pessoas possam, assim como ela conseguiu há alguns anos, desfrutar despreocupadamente da cidade. Que tenham a chance de, realmente, conhecer Belém como ela teve e de ter prazer em viver, algo que está em falta em todo Brasil, segundo a advogada, não só aqui. “Eu sou do tempo que a gente curtia a vida, agora as pessoas não sabem viver. Até os dias atuais, eu vou muito ao cinema de arte, ao teatro, cineclubes. Tenho uma quantidade de filmes exorbitante. Leio demais, é o que eu mais faço na vida.” É com esse pensamento aberto e a expectativa de mudanças na vida do Belenense que Maria fala sobre o que já foi e o que espera do aniversário da metrópole da Amazônia.
 
Como era Belém da sua infância e juventude?
Era muito mais amável. Aos 17, 18 anos, eu ia para bailes geralmente na Assembleia Paraense, na Praça da República e voltávamos para casa andando, de madrugada, acompanhadas de nosso pai. Na volta da festa, continuávamos na caminhada, cantando, brincando, sem medo de assalto, de ladrões, de nada. Era absolutamente seguro. Uma cidade calma, as pessoas colocavam suas cadeiras na porta para conversar, isso era normal depois do jantar. Ninguém olhava com medo um para o outro, não.
 
O que mais marcou você nessa época?
Gostávamos muito de passear e isso significava andar a pé. Nos tempos de faculdade, ninguém pensava em tomar ônibus, sempre preferimos sair por aí andando da escola de Direito, no largo da Trindade. Não havia essa necessidade de ir direto ao ponto a que se queria chegar, preocupado de não se perder ou colocar-se em situação de perigo, porque não existia isso. Você tinha o prazer de andar pela rua. Isso não tem preço. E até mesmo a vista da cidade era agradável, bonita. Os prédios antigos estavam de pé, era tudo muito harmonioso.
 
E por que você acha que se perdeu essa segurança, essa liberdade de poder ter contato com o lugar onde vivemos?
A segurança se perdeu. É preciso fazer um verdadeiro tratado de sociologia para pensar nos motivos de as pessoas terem ficado violentas. As teorias para resolver isso são inúmeras, alguns atribuem ao crescimento populacional, pela questão social, outros que dizem que é por causa do materialismo das pessoas, a vontade de ter enriquecer. Eu não percebo uma explicação para isso. Acredito que existe um conjunto de fatores que levaram a esse quadro de violência, porque não é só aqui, mas no Brasil inteiro. Acho que os tempos são de violência.
 
Mas como é que você contorna isso para fazer seus passeios?
Hoje a gente só anda de carro, vai direto aos objetivos. Se eu quero ir ao supermercado, pego um carro aqui que me deixa na porta do mercado, volto para casa da mesma forma. Aquele prazer de vagar pelas ruas da cidade sem objetivo, só porque gosto, não existe mais.  É um tipo de encanto que você tem quando viaja. É por isso que tanta gente vai para fora, para ter essa satisfação em Paris, Lisboa, Madri, as cidades em que ainda é possível fazer este tipo de coisa.
 
Ainda assim você gosta de morar aqui, por que?
Eu gosto, principalmente por causa dos meus amigos, dos parentes, da proximidade com as pessoas que eu gosto. Porque a Belém que eu amava de paixão mudou muito. O que mais admiro e amo são as pessoas daqui e é por isso que eu fico. Toda semana, nos encontramos, ouvimos músicas sinfônicas juntos, Óperas, assistimos a balés. É um grupo que se reúne há mais de 30 anos, você acha que eu vou mudar daqui?

As pessoas reclamam que não têm muito tempo para essas coisas, como reunir os amigos, reservar um momento para ficarem sossegadas. Antes era assim, sempre corrido?
O ócio é uma coisa muito séria, tem de ser respeitado. Se você só trabalhar, trabalhar, trabalhar, sem um minuto de reflexão, você não faz nada. Não era tanto assim, as pessoas tinham algum tempo para pensar, decantar as sensações, para deixar as coisas acontecerem. A vida da gente era mais confortável. Mas isso depende da cabeça das pessoas. Quando queremos algo, criamos tempo para fazê-lo. Isso é muito pessoal, não tem receita. É relativo, vale se você fica feliz.
 
Você é uma verdadeira lenda viva do teatro paraense. Como essa história começou?
Eu sou autodidata. Não sou teatróloga como dizem. Eu gosto de teatro - colocam esses rótulos na gente, depois fica difícil se livrar. Sempre gostei. Desde criança, fazíamos isso em casa, no porão e sempre estudei muito sobre o assunto. Lia muitos livros. A história começou com a minha irmã, que era da União Acadêmica e trabalhava com a Margarida Schivasappa. Elas faziam teatro de estudantes e eu, garota, ficava observando. Desde aí, comecei a nutrir interesse pelo tema. Mais tarde, um diplomata chamado Pascoal Carlos Magno convidou Margarida para fazer uma peça no Rio de Janeiro. Mas, naquele momento, o teatro daqui estava em baixa, sabe como é... o estudante se forma, vai cuidar da vida e desaparece o elenco. Para resolver a situação, minha irmã se lembrou de uma peça em inglês, que seria interessante porque tinham poucos personagens e seria fácil reunir as pessoas para fazer essa peça. Ela traduziu, juntou um grupo de pessoas e se apresentaram no Rio – foi um sucesso. Todos voltaram animados e resolveram retomar o teatro estudantil e foi aí que entrei na história, por volta de 1950. Logo apareceram pessoas interessadas. Resolvi começar de outro jeito, dessa vez estudando as técnicas necessárias. Nos reuníamos aos sábados, fazíamos conferência, estudávamos teatro grego etc. Líamos muita poesia. Foi quando resolvemos produzir uns recitais e, em seguida, fizemos “Morte e vida Severina” do João Cabral de Melo Neto. Pascoal de Carlos Magno passou por aqui novamente, viu nosso trabalho e nos chamou para um festival em Recife. Participamos e ganhamos muitos prêmios, cresceu a animação e nos deu gás para continuar nossa iniciativa, que depois deu origem a Escola de Teatro e Dança da UFPA.
 
E hoje em dia...
Está maravilhosa a escola. Sou aposentada de lá há muito tempo, mas dou todo o apoio que eles me pedem. Estou à disposição a vida inteira, adoro o pessoal de lá. Eles fazem um trabalho maravilhoso.


 
Sendo estudiosa de teatro, como você via o cenário antigo dessa expressão artística e como ela se representa hoje em Belém?
As pessoas ficaram muito mais interessadas em teatro, houve um progresso. No meu tempo, era muito difícil, não tínhamos as menores condições. Agora se tem mais disposição, meios, inclusive, além de mais mídias para divulgar o movimento. Produzia-se pouco no passado porque era complicado... Para começar, nem tinha onde apresentar o trabalho. Hoje, há vários lugares para se fazer teatro. Basta pegar o jornal e ver. As peças gregas são produzidas até hoje e não têm nada mais moderno do que isso.
 
E é uma carreira promissora em Belém?
Eu não sei dizer porque aqui não existe um teatro profissional como existe em São Paulo. Ativo e funcionando o ano todo tem um pouco no Rio Grande do Sul. Belém tem alguns grupos que vivem fazendo um grande esforço para insistir. Você viu que muitos cinemas de rua fecharam? Agora imagine os teatros que precisam de cenário, iluminação, refrigeração, pagamentos de atores... Quem perde com isso é a população, pois é uma forma de arte da qual eles não participam.
 
Os 400 anos estão chegando, o que você espera desse tão aguardado aniversário de Belém?
É quase uma utopia, mas eu queria que Belém voltasse a ser uma cidade amável. Que pudéssemos caminhar por aí; que as senhoras pudessem colocar suas cadeiras na calçada. Que, ao invés de destruir as casas antigas, cuidassem delas e a especulação imobiliária não fosse tão selvagem e feroz. Que as praças fossem acolhedoras e que os habitantes se sentissem seguros. Queria mais beleza; que acabassem as pichações pelas paredes e prédios. Meus desejos são utópicos. São por uma cidade mais afável.

Mais matérias Especial

publicidade