Círio a Nazaré de todos nós

A festa tradicionalmente da Igreja Católica une povos, cores, raças e religiões.

06/10/2014 10:53 / Por: Ana Carolina Valente/ Fotos: Dudu Maroja
Círio a Nazaré de todos nós
O Círio de Nazaré é a maior manifestação Católica do Brasil e um dos maiores eventos religiosos do mundo, reunindo cerca de dois milhões de pessoas. Realizado em Belém, anualmente, no segundo domingo de outubro, com várias celebrações que começam em agosto e se prolongam 15 dias após o Círio, na chamado “Quadra Nazarena”.  Para os paraenses, gera grandes expectativas entre os seus, como um momento de demonstração de fé e renovação de laços afetivos, desde as novenas até o tradicional almoço com a família, realizado no domingo da procissão. O fervoroso clima da cidade gera comoção em muitos, na festa que foi tombada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
 
Várias pessoas criaram elo de contemplação e têm uma enorme estima pela celebração [inclusive os nãos-católicos]. Devido à receptividade a vários credos, o aspecto coletivo e a clara solidariedade humana entre os fiéis, a festa tornou-se uma manifestação cultural. Seus admiradores conseguem vislumbrar dentro da festa, o ser humano, exercendo sua capacidade de aceitar, de suportar e de comungar a diferença, constituindo o vigor de identidade pessoal em um contexto de relação de igualdade em que causas e sentimentos são diferentes, mas o objetivo de partilhar é o mesmo. 

Sobre toda essa pluralidade proporcionada aos paraenses pela festa, conversamos com a conselheira nacional de cultura e membro do Comitê de Diversidade Religiosa, Mametu Nagetu, que afirma convictamente: “O Círio vai além do religioso. É quando vemos o poder da fé unir pessoas que nunca se viram. Pessoas que vão além do seu poder em suportar a dor e os seus limites. Isso é a presença da Nossa Senhora e de Deus”. E como de se esperar, ela o celebra. “Recebo amigos e familiares em casa de outros estados para poder confraternizar, tenho afeição por esse momento”. Apesar de ser de uma linha africana religiosa – Candomblé, de tradição Bantu - que não tem o sincretismo com a Igreja Católica, ela confessa: “O amor pela Nazica é enorme, tenho muita fé. Quando ela passa, sempre agradeço e vou às lágrimas. E peço pela paz universal. Precisamos praticar o embuto (termo que significa irmandade) com urgência”.  
 
Tendo comemorado com os membros da comunidade por algum tempo, ela optou por outro “formato”. “Desde então, prefiro minhas homenagens particulares”. A mãe de santo explica como aproveita o manifesto nos últimos anos: “Vou desde o Auto do Círio [teatro a céu aberto, com vinte anos de existência e que sai, em cortejo, pelas ruas da cidade velha, bairro de Belém] em que todos nós do Bantu e do Candomblé fazemos a nossa manifestação cultural cantando e dançando. Vou ao Círio Fluvial [procissão realizada de barco pela Baía do Guajará], pois tenho a homenageada como Oxum e faço minhas oferendas de flores e joias. Vou à trasladação [procissão realizada na noite anterior ao domingo do Círio] e ainda passo na festa da Chiquita, em que o profano e sagrado dão as mãos.

No dia da grande procissão, saio de madrugada de casa e assisto à missa na Sé, para então acompanhar”. E desabafa quando se fala de paz e preconceitos: “Eu vou simples, só com o meu fio de conta no pescoço, minha proteção”. E conclui: “Deus não segrega pela cor ou religião. As pessoas têm direito ao seu pensamento. Isso é direito do ser humano. Fomos abençoados com o dom exclusivo de pensar, cada um à sua maneira”, pontua.

O defensor público Vladimir Koenig não tem religião e reafirma a condição de que não apenas os católicos trazem a simpatia com a festa dentro de si. “Gosto do Círio. Acho que ele gera mais relações afetivas entre as pessoas que se desejam ‘bom Círio’ como se fosse Natal. O lado emotivo fica evidenciado. Você, acreditando ou não, tendo religião ou não, inevitavelmente se envolve. Além de ser uma demonstração de fé bonita e autêntica, apesar de não tê-la”, afirma. Koenig, que trabalhou como voluntário da cruz vermelha por cinco anos na grande procissão, confirma o óbvio: “As pessoas se engajam em fazer a festa de uma forma coletiva - porque as chances de dar errado são altíssimas. Ninguém tem como controlar uma massa humana imensa se movimentando de um lado pro outro em ritmos diferentes. Não há histórico de tragédia - e não somente pela organização da festa, mas porque as pessoas vão imbuídas em contribuir e trazem consigo essa responsabilidade. E esse congraçamento de um milhão e meio de pessoas funciona porque elas se esforçam muito”.
 
Entre a contradição em não crer em um tipo de Deus, ele argumenta o sentido que o aproxima do Círio: “Apesar de ser ateu, acredito muito no poder do ser humano e o Círio é uma dessas demonstrações que é possível, em algum momento da vida, as pessoas se unirem para coisas boas, em circunstâncias extremamente adversas, sem nenhuma combinação prévia”. E continuou: “No Círio do ano passado, eu fui fotografar e passei em frente a uma igreja pentecostal e estavam servindo café da manhã. Antes, víamos algumas igrejas evangélicas tendo repulsa por essa manifestação. Acho que é o mesmo que entrar em uma igreja evangélica e dizer que aquele pastor não é intérprete de Deus. É tão agressivo quanto. Gosto de pensar e ver que cada vez menos isso acontece entre as pessoas que professam outra forma de fé. Eles tiveram a percepção de que são seres humanos e estão com fome, não interessa o porquê. Esse respeito eu achei bonito”.



“Essa coisa de fazer juízo de valores de ignorância ou não, não me cabe julgar. A relação com a fé é muito individual. Tal como não tolero que me digam que eu tenha que acreditar em alguma coisa. As pessoas precisam respeitar a minha não-crença e eu respeitar a demonstração de devoção delas. Não vou ficar dizendo para parar de fazer isso que não vai dar certo. Até porque vai que estou errado? Vai que Deus existe?”, conclui e sorri.
 
Falando na festa, em clima de respeito e confiança recíproca, conversamos com o ator e jornalista, Márcio Moreira. Convertido há sete anos para a religião evangélica, o jornalista comenta as excelentes lembranças que o Círio lhe traz: “Antes de ser evangélico, eu já era paraense, então o Círio corre tanto nas minhas veias quanto o carimbó, a maniçoba e a chuva da tarde. Outubro sempre foi um mês de frenesi e felicidade. Amigos e parentes que viviam distantes, em outros estados, tinham data certa para chegar. As casas exalam perfumes típicos [das comidas] que minha memória trouxe comigo pro Rio”. Quando indago sobre sua religião não ser a “oficial” da festa, ele elucida: “Com um tempo, entendi que apenas Jesus é O caminho, A verdade e A vida, e isso não dá espaço para outras entidades na minha espiritualidade, contudo, não invalida a fé professada por outras pessoas que igualmente me emociona e me toca profundamente”. E ressalta seu respeito à figura homenageada pelo festejo: “Amo Jesus Cristo e, por isso, também amo a mulher escolhida para trazê-Lo ao mundo e minhas raízes sentem o efeito dessa grande manifestação do amor na minha terra”. Reafirmando o seu contexto popular, o evento permitiu ao ator vivenciar a festa desde a sexta-feira: “A minha criação artística durante esse período ganhava as ruas da cidade, por meio do Auto do Círio, em que interpretei santos e promesseiros, permitindo-me fazer parte diretamente desse momento tão nosso. Tão meu”. 
 
“O Círio transcende a devoção a uma santa. É um rito de apropriação, pertencimento e identidade amazônida. É parte importante de como me organizo no mundo e me encaro enquanto sujeito para além da minha espiritualidade. Na expressão dos promesseiros, nos pés descalços, no choro sincero é a nossa chance anual de dizer para o mundo o quanto a gente se orgulha de onde a gente nasceu”, finaliza. 

Portanto, podemos perceber que o êxito do contagiante espetáculo que é o Círio, é proporcionado pelas pessoas que fazem essa reunião e permitem, ainda que aleatoriamente, que se cumpra exatamente a etimologia da palavra ‘religião’ - do latim religare - que tem como significado unir, atar. É uma festa democrática, sem obrigações litúrgicas, onde ninguém precisa ir contra sua própria identidade, fingindo ter outra. São focos e opiniões diferentes juntas, convivendo pacificamente e ainda melhor: ajudando um ao outro, favorecendo a dignidade do homem e de seus diretos fundamentais, como o respeito. Vemos que o Círio é popular na sua essência e traz consigo o enlaço que une, abraça, conforta, diminui saudades, aumenta esperanças, confraterniza. Gera amor, carinho, afeto e dinheiro. Basta respeitar independente da fé, da crença e da razão. Esse é o sentimento que fica após o término do Círio. Que poderia se perpetuar.
 

Mais matérias Memória, História e Patrimônio

publicidade