O chamado

No curso de Arquitetura e em meio a vivências, Alexandre Dantas atendeu a um chamado antigo: seria artista.

18/12/2014 17:42 / Por: Camila Barbalho. Fotos: Dudu Maroja
O chamado
 
Não é pela habilidade que a deusa Arte evoca seus eleitos. 

Talento, naturalmente, é fundamental para receber a menor atenção que seja da entidade. Predisposição talvez motive um olhar, mas não é o que garante acesso ao mundo único dos que podem se chamar artistas. Há certa coloração especial na alma destes – um tom indefinido, mas vívido; feito de obstinação, sede e inquietude. Sim, porque um artista é – precisa ser – um inquieto antes de qualquer coisa. Ele é de saída um buscador incessante. Saber o que buscar não é o mais importante: a incerteza também é matiz que pinta o lado imaterial dos escolhidos.
 
 
Voka, pintor contemporâneo de uma corrente estética chamada “realismo espontâneo”, cunhou a frase que sintetiza o papel de quem aceita essa jornada incansável: “eu estou sempre à procura da pintura perfeita, mas também sempre esperando não achá-la – porque é a procura que eu realmente amo tanto”. O austríaco é alguém cuja obra é regida pelo incômodo de restar no mesmo lugar, tendo mudado de linguagem ao longo do desenrolar de sua carreira. Não à toa, Voka é um ídolo e referência para Alexandre Dantas, arquiteto que descobriu na pintura seu meio de expressão preferido – um meio cujas rotas não são imutáveis. Alexandre é inegavelmente talentoso. Seu pai também pintava e se identificava com a música, então é possível dizer que haja algo nele de predisposto. Mas ele tem mais: é a tal alma. Obstinado, inquieto e sedento por produzir, Dantas possui a coloração especial que só os escolhidos pela deusa arte possuem.
 
 
Foi na infância que Alexandre descobriu sua relação com a imagem. Ele até tentou brincar com as tintas do pai, mas o material tóxico não era o mais adequado para uma criança. Então, veio o desenho, desenvolvido desde tenra idade e com a fluência natural da língua mãe. O gosto pelo traçado o levou direto ao curso de Arquitetura; e a habilidade o fez dividir-se entre os projetos próprios da área profissional e o hábito de desenhar pela diversão, que ficou reservado para as horas vagas. Mas esse vínculo ainda era só o início. “Costumo dizer que fui chamado pela Arte algumas vezes. A primeira foi vendo meu pai pintar, quando comecei a desenhar. Depois, logo que me formei, fiz curso de fotografia e me apaixonei por essa arte”, rememora. A experiência com as câmeras treinou o olhar e rendeu aprendizados especiais. Passou o tempo e outro aceno da criatividade foi correspondido. “Fui morar em Recife em 99, passei dois anos lá. Recife é uma cidade que respira arte, e lá eu trabalhei como fotógrafo. Nessa época, descobri as esculturas de cimento, aprendi a fazer e me apaixonei também”.
 
 
Dantas já tinha experimentado diversas frentes artísticas quando, em 2007, foi tomado pela ansiedade de se manifestar em outro meio: a tela. Por não ter prática com a pintura, começou a desenhar com carvão – e atingiu rapidamente um estágio de qualidade realista muito difícil de alcançar. Apesar do êxito, ainda não era isso. “Nesse mesmo ano, recebi outro chamado”, conta ele. “Minha sogra também pintava e, nos almoços de família, eu sempre dizia a ela da minha vontade de aprender a pintar, pedia que ela me ensinasse. Repetia isso todo domingo, ela ria e dizia que eu já sabia... Mas eu não sabia mesmo (risos). Um dia, ela me pegou de surpresa: cheguei lá e ela colocou na minha frente a tela e as tintas”. Alexandre recebeu da sogra as dicas que precisava para começar sua caminhada por conta própria. “Ela me apresentou os produtos para diluir, as pinceladas... Foi o que bastou. Quando terminei a primeira tela, parecia que meu corpo inteiro estava pulsando”. 
 
A descoberta da pintura rendeu ao arquiteto quase dois anos de trabalho criativo intenso. A partir daí, pintar era mais que explorar uma nova habilidade – tornou-se um vício. “Eu não conseguia mais parar. Eu começava às 18h e só conseguia largar às 4h. Acordava de madrugada pra pintar”, relembra. Foi quando surgiu a primeira oportunidade de expor. “Abriu um edital da galeria Theodoro Braga. Eu resolvi arriscar. Tinha três trabalhos prontos e decidi mandar. Fui aprovado. Foi então o momento em que tive que me virar pra fazer o resto, porque precisava ter pelo menos umas 18 telas pra exposição. Aí que comecei a produzir mesmo em larga escala, não parava por nada. A mulher até reclamava que eu não dava atenção (risos)”. A mostra impulsionou ainda mais o instinto de se manter em profunda atividade, e o relaxamento só veio depois que o momento na galeria foi concluído. Embora o ritmo tenha diminuído, o arquiteto seguiu pintando, pesquisando e desenvolvendo sua própria técnica.
 
Em 2010 veio a primeira mudança de rumo desde encontrar-se em meio às tintas. Sua esposa viveu uma gestação complicada, o que alterou totalmente a vida familiar – e a vontade que Alexandre tinha de se expressar artisticamente. “Fiquei sem pintar até 2012. Eu tentava, mas não conseguia. Eu achava estranho quando alguém dizia que estava com bloqueio criativo, achava que era papo furado. Mas vivi um bloqueio e tanto, não tinha ânimo nem inspiração. Sentava na frente da tela e não vinha”. Nesse meio tempo, Dantas só não ficou totalmente parado por ter sido convidado para duas exposições - uma individual e outra de aniversário da galeria Theodoro Braga, que trouxe uma de suas obras. Depois que sua filha nasceu, em 2011, as coisas começaram a voltar aos eixos... Mas essa vivência tinha modificado algo no artista. 
 
Seu trabalho até então era bastante realista, e agora a necessidade de demonstrar algo além falava mais alto. “As pessoas começaram a perguntar se a minha exposição era de fotografia. Foi quando eu percebi que não era o que eu queria. Eu já sabia aonde eu poderia chegar, sabia que poderia tender ao hiper-realismo... Mas eu poderia fotografar, se fosse esse o meu caminho. Queria aproveitar a linguagem da pintura de outra forma”, avalia. Em busca de algo que o motivasse de novo, veio o encontro com o trabalho do austríaco Voka. “Me apaixonei pelo trabalho dele. Fiquei observando a maneira dele pintar, as pinceladas, cores... Aí me veio essa segunda fase do meu trabalho”. A mudança que Alexandre precisava foi novamente coroada com uma oportunidade na galeria que lhe hospedou anteriormente. A nova mostra foi marcada por esse “conflito de fases” – que inspirou inclusive uma tela que deixa essa transição bem definida: um rosto dividido ao meio, com o lado esquerdo realista, pintado a óleo e em preto e branco; e o lado direito em acrílico, numa verdadeira explosão de cores. 
 
A exposição, chamada de “Espontâneos” (outra referência ao Voka, inspiração desse momento), trouxe vários rostos carregados de expressão – um tema que não era muito frequente na obra de Alexandre anteriormente. “Eu achava que não conseguia fazer figura humana, mas foi saindo. Fiz Carlitos, fiz o Papa... Aí tive a ideia de homenagear algumas personalidades que levam o nome do Pará pra fora: fiz a Liah Soares, o Lyoto Machida, o arquiteto Aurélio Meira, a Fafá de Belém, o Alan Fontelles, a Gaby Amarantos... Quando eu vi, já tinha feito vários rostos. Precisava dar uma unidade à exposição, então insisti no tema até sair a mostra”.  A fase de “realismo espontâneo” de Dantas foi um grande sucesso e rende frutos até agora – além de encomendas para retratos no estilo. “Eu faço, mas sofro muito (risos). Sempre acho que não vai dar certo, mas no final tudo sai”. 
 
A dificuldade vem do fato de o artista já ter esgotado esse momento criativo e ter passado para uma nova etapa. Sua terceira fase é marcada pelo abstrato – o último estágio no processo de desconstrução da linguagem figurativa que deu início ao seu trabalho. O estalo para essa etapa, além da liberdade criativa, vem de uma demanda de mercado. “Na verdade, eu vivo em conflito. Eu vejo que todo mundo segue seu caminho... Eu não tenho um caminho certo. Passei a investir de verdade nessa carreira este ano, e senti que o mercado de decoração e arquitetura - que é o meu meio - demandava bastante a temática abstrata na construção dos espaços. Por isso, decidi aprender a pintar dentro desse estilo, que eu nunca tinha experimentado”, explica ele. Desde que passou a explorar a abstração em suas pinturas, Alexandre decidiu iniciar um trabalho de corpo a corpo para que os interessados em arte descubram sua produção. “Tenho contatado os amigos arquitetos, fazendo um trabalho de formiguinha. Tenho visto os resultados, as pessoas estão gostando...”. 
 
Naturalmente, o processo criativo da fase nova não obedece aos mesmos caminhos dos momentos anteriores. As referências mudam, assim como o que motiva a pintar. Dantas explica: “Houve um tempo em que eu me inspirei muito nos renascentistas. Cheguei até a fazer reprodução de Caravaggio. Mais tarde, o Voka se tornou uma inspiração. No abstrato, não tenho nenhuma grande referência. Eu só queria saber fazer. Procurei uma professora pra me ensinar algumas técnicas, e tive dois dias de aula com ela. Depois do empurrão, nem voltei lá. Passei a criar por conta própria”. Já que não há trilha no chão apontando a rota correta, o trabalho para o arquiteto pode começar antes de se deparar com a tela em branco. “Passo um tempão passando o olho em várias imagens, até que uma combinação de cores me chama a atenção, por exemplo. Aí a inspiração acontece. Às vezes sento na frente da tela e não sai nada... Mas fico lá, viajando, até que uma hora alguma coisa vem. Às vezes eu não penso: crio uma textura, vou jogando as cores, e tudo vai surgindo naturalmente”.
 
Embora seu foco hoje seja a pintura, a pluralidade de Alexandre Dantas permite que ele se comunique de diversas formas – e que seus muitos talentos se comuniquem entre si. “Hoje eu só fotografo quando viajo, ou pra basear outros trabalhos - como uma série em aquarela na qual eu tenho trabalhado. A arquitetura dialoga diretamente com essa ambição estética, de pensar na tela já pensando num espaço que possa recebê-la”, avalia. Além da fotografia e da arquitetura, outra inusitada habilidade exerce influência na sua maneira de pintar: o tiro. “Sou atleta de tiro desde os seis anos de idade. Já fui onze vezes campeão brasileiro de tiro. Isso me ajudou muito na pintura. O tiro exige muita atenção aos detalhes, muita concentração, o foco, a mão firme. Tudo isso ajudou muito na construção da minha técnica. Acaba que as funções se completam”. 
 
Vivendo um excelente momento em sua produção, Alexandre entende que agora é hora de fortalecer seu nome entre os consumidores de arte no estado. E ele diz isso sem constrangimento, assim como é sem pudor que vai em busca dos clientes. “Qualquer um tem que ser vendedor do seu trabalho. Isso faz parte. Não posso cruzar os braços e esperar que as coisas simplesmente aconteçam. É divulgar pela internet, avaliar o retorno das pessoas, ir visitar os escritórios de arquitetura, mostrar o trabalho. Não posso me acomodar, senão eu tô ferrado (risos)”. Bem humorado e incansável, ele não demonstra nenhum desânimo ou receio. O desconforto consigo mesmo vem justamente sob a forma de sua maior força motriz: a inquietude, esse toque especial próprio dos eleitos. “Eu só fico meio frustrado quando tenho uma tela que fica em casa. Às vezes empresto pra um amigo, pra ele colocar na sala dele... Eu quero que as pessoas vejam, que a obra circule. Não quero que ela fique escondida”. 

Mais matérias Entretenimento

publicidade