Que malvada sou eu?

Vilãs de histórias infantis ganharam a oportunidade de contar suas versões e mostram que nem tudo são trevas.

06/10/2014 09:28 / Por: Bruna Valle
Que malvada sou eu?
O desfecho “felizes para sempre” não era assim tão bom para todos os personagens envolvidos nos contos de fada. A antagonista sempre era punida por seu comportamento antipático e destrutivo. Embora na história nunca fosse revelada de onde vinha tanta maldade e ressentimento – levando o espectador/leitor a crer que era uma qualidade nata da antagonista -, seu destino era sempre o mesmo: pagar todos os males que causou antes da felicidade eterna para os bons.

Não é possível dizer a origem exata dessas características de contos de fadas, pois estão presentes na cultura de diversos povos e regiões desde a época da oralidade. Segundo a crítica de literatura infantil Denise Escarpit, essas narrativas remontam de antigos contos populares adaptados a uma forma didática e pedagógica que incorporava valores já presentes nas sociedades. Uma maneira simples de transmissão de ensinamentos ligados ao senso comum e uma moral ingênua baseada no típico final feliz depois que o bem vence o mal.

Uma rivalidade clássica que perdura até hoje como uma fórmula infalível de tramar histórias, que nós sabemos bem onde começa e como termina e mesmo assim sempre assistimos. Mas como ser diferente é normal , algumas narrativas ganharam novas versões, em que os abomináveis personagens têm a chance de mostrar a explicação para tudo de ruim que fizeram, suas razões ou motivos. Será que deu certo?
 
Parece que sim. Um exemplo de sucesso é a reviravolta no clássico Mágico de Oz de L. Frank. Baum, lançado em 1900, causado pela narrativa da trajetória da Bruxa má do Oeste retratada de uma forma bem diferente em Wicked - escrita por Gregory Maguire em 1995. Nela, podemos contemplar uma Elphaba (Bruxa Má do Oeste) distinta da que vislumbramos pela versão de Dorothy, que na verdade nem nos preocupamos em conhecer já que é normal admitir que, se é bruxa e faz coisas ruins à mocinha, só pode ser nefasta. Gregory Maguire mostrou ao mundo que Elphaba teve suas razões e não só convenceu, mas acumula inúmeros fãs que a adoram no livro e, principalmente, na adaptação para a Broadway, que ano passado comemorou 4.269 apresentações e seu décimo primeiro lugar como show mais longevo em cartaz na Broadway. Ao vivo e em cores, as pessoas puderam distinguir uma história bem mais complexa do que estavam acostumadas a ver e isso as encantou.
 
Uma dessas fãs confessas é a fotógrafa Diva Nassar, que leu o “Mágico de Oz” depois de conhecer “Wicked”, ou seja, fez o caminho contrário. Mas garante que a ordem desses fatores foi providencial na compreensão da trama. “Eles transformaram a história por completo. A bruxa má passa a ter relação prévia com todas as personagens, menos a Dorothy. Ela é a principal do livro. Achei uma mudança incrível e muito bem feita, talvez por ser bem mais atual e menos maniqueísta”.
 
A abordagem audaciosa do clássico representa não só a quebra do paradigma maniqueísta, mas uma complexidade muito mais ampla no mundo dos contos de fantasia. E Diva acredita que essas releituras são essenciais para que façamos uma avaliação equilibrada do que entendemos como positivo ou negativo e os valores a eles interligados que vêm arraigados desde a mais tenra idade. “Essa obra revela uma tendência: que é a de vermos os vilões por outro ângulo. Onde ninguém é rotulado e todos fazem escolhas e elas, obviamente, têm consequências. É uma experiência interessante porque derruba a ideia de que alguém pode ser essencialmente ruim ou completamente bom. Os princípios mudam quando eles são apresentados de forma mais comparável com a realidade e nós mesmos nos avaliamos”.
 
Mas isso só é possível depois de já ter um pouco de maturidade. A fotógrafa destaca que “não questionamos o comportamento das personagens dos clássicos quando crianças porque ainda não tivemos experiência suficiente. Uma vez que isso acontece, é impossível acreditar que alguém seja somente maldoso ou bondoso. E essa impressão simplista tem que ser quebrada sempre que possível. Tomamos decisões de que nem sempre nos orgulhamos. Não acho que devamos ser definidos por elas. Não podemos só nos agarrar às coisas boas e jogar as ruins pra baixo do tapete”.

E o segredo para o sucesso de abordagens como a de Wicked e até mesmo a nova produção da Disney “Malévola”- que reconta a história da bruxa má inimiga da princesa Aurora - é, para Diva, a “aproximação de fantasia e realidade, mostrando os fatos por trás da conduta duvidosa das vilãs. Fator que cativa e faz com que o público se identifique com a vilã. Isso traz à tona a noção de como as nossas atitudes podem ser mal interpretadas e transformadas em uma imagem que não condiz com o somos inteiramente”. 
 
A série “Once Upon a Time”, criada por Edward Kitsis e Adam Horowitz e que estreou em 2011, também pegou esse caminho da releitura e foi além, colocou os personagens entre o nosso mundo e o fictício – aproximando-os ainda mais da nossa realidade. É no formato de seriado que vemos a história da Branca de Neve ser contada mais uma vez em nossas vidas. Mas não é só a vilã que está em foco e além dos famosos coadjuvantes do clássico, ainda temos a interseção de outros contos na mesma trama. Nesta versão, convivemos com uma multiplicidade de personagens, significados emoções humanas.



A designer de interiores Mariluci Figueiredo é uma das espectadoras e afirma que é exatamente essa diversidade em tudo, mas, principalmente, o fator realidade é que desperta a curiosidade e interesse pelo enredo. “No conto original, tratava-se de uma alegoria, um lugar distante, sem nome ou inexistente no mapa mundi. ‘Once Upon a Time’ traz a magia para o mundo real e atual. Os personagens são mais parecidos com os humanos e vivem as dores e alegrias do mundo de hoje”.
 
Embora seja fã dos clássicos e considere de suma importância para a fase de formação dos indivíduos, Mariluci admite que novidades que envolvem o universo fantástico são muito bem vindas, mas não devem substituir as versões originais que têm a profundidade necessária para começar a conhecer a literatura e os saberes nela inseridos. “Eu achei interessante a proposta de reinvenção. A fantasia sempre me agrada e chama a atenção. Meu lado criança/adolescente ainda fala alto no que tange a filmes, livros etc. Apesar disso, acredito que as crianças devem ver os clássicos. São bonitos, bem feitos e o bem vence o mal. No mundo de hoje, um pouco de fantasia e finais felizes são uma necessidade!”.
 
A fórmula do “felizes para sempre” pode até ser clichê e, claro, ter as motivações dos vilões desmitificadas são um ponto positivo, mas, para Mariluci, ver os bons triunfarem sobre os maus não tem preço, seja como for. “Todo mundo gosta de ver o bem vencer. Esperança é sempre bom e é uma combinação que deu e continua dando certo mesmo nos filmes modernos. Não vejo as pessoas querendo julgar diferente o antagonista, embora dê pra entender os motivos da bruxa - pelo aspecto humano inserido - isso não justifica suas ações. As histórias originais têm um apelo muito forte. Estão entranhadas na mente das pessoas. Ao dar cara nova a essa história, adiciona-se curiosidade e expectativa sobre como vai ser, mas não vejo preocupação em avaliar a fundo os personagens. O interesse aumenta porque as pessoas, de repente, se enxergam neles e o mal é um algo muito presente na vida real. Acho que, talvez, seja reconfortante saber que, por trás do malvado, existe um ser como todos nós, mas que, no fim das contas, quem age de acordo com o bem é sempre recompensado ”.


 
O “Livro dos Vilões”, lançado recentemente, recria os clássicos em um universo também real e humano em que as situações que envolvem os famigerados personagens infantis são bem distintas das que estamos acostumados, até os nomes não são os mesmos, exceto no conto de Fabio Yabu, que respeita alguns limites e características da clássica história do lobo mau. “A menina e o lobo” é um dos mais diferentes da coletânea, pois, embora se passe no mundo dos contos de fada – diferente das outras que se ambientam no mundo real -, propõe uma leitura bem mais crítica desse universo paralelo, onde estão todos presos aos seus desfechos já conhecidos, da princesa a bruxa. E, para dar um novo rumo a esse padrão, é que entra o lobo mau e suas reflexões psicológicas dando rumo à narrativa.

Segundo Fábio, sua história é totalmente voltada para o tão famoso lobo mau, mas não aquele que você só viu aparecer nos momentos de perversidade e sim o que toma forma no íntimo do personagem, em seus pensamentos. “Este trabalho me exigiu muita pesquisa porque bastante coisa já foi feita acerca de releituras. Eu não queria simplesmente mostrar a mesma história de um ângulo diferente, queria explorar algo que ainda não fosse conhecido. Por isso, ela mostra como se dá a ‘maldade’ nas histórias infantis, como ela funciona e influencia no plano geral. Eu trato ele não só como um personagem, mas uma força necessária na história para mostrar o quanto precisamos disso, desse equilíbrio. O meu conto no livro é o mais diferente, pois pude surpreender as pessoas com a abordagem”.

Assim como Mariluci, Fabio acredita no papel crucial de começar a perceber o mundo pela janela dos contos à moda antiga, pois é exatamente a simplicidade característica deles é que dá o embasamento necessário para compreensão do que ainda virá pela frente. “A minha história, bem como as outras que vão por este caminho são mais indicadas para o publico jovem adulto. As crianças precisam conhecer bem as fábulas originais para apreciar as novas interpretações. As narrativas arquetípicas servem para formar a base literária e de símbolos sem a qual a criança não conseguiria explorar outros tipos de obras”.

O Psicólogo Cezar Adrião explica que todo esse arranjo perfeito disseminado pelas narrativas que nos “educam” a conceber a realidade é totalmente pragmático e tem apenas uma função: nos indicar como agir dentro das regras já existentes da sociedade. “A vivência do mal na infância de certa forma impunha um limite inquestionável quanto à sua conveniência. Não havia o que (ou assim se fazia conveniente aos adultos) se questionar quanto à possibilidade de ser flexível quanto ao mal. Ser mal era aquilo que se devia evitar a todo custo, ao mesmo tempo em que servia como parâmetro negativo; agia-se bem ao não agir mal. Por isso, não se vislumbrava profundidade nos personagens malignos: a maldade deles não possuía qualquer justificativa aparente (como no caso de malévola em A Bela Adormecida) ou então era limitada a um aspecto não equilibrado da personagem, algo que servia como exemplo negativo, exemplo de como não agir, de como não ceder aos sentimentos e impulsos mais egoístas do ser humano (como a inveja que nutria a rainha má pela beleza de Branca de Neve)”.

Mas essa transformação na forma de retratar condutas e comportamentos dentro das já citadas histórias está acontecendo e todos estão tendo a oportunidade de distinguir e julgar por si mesmos se condenam ou não as vilãs. E esse, para o psicólogo, é um caminho sem volta que permite inúmeras reflexões e exigem bem mais do espectador. “Sem dúvida, a complexidade das ‘vilãs’ amplia as possibilidades de identificação dos leitores com suas companheiras imaginárias. Aprofundar nas origens delas, que anteriormente padeciam de qualquer justificativa aparente para os atos malévolos que praticavam, leva-nos a imergir na realidade e na psicologia particular (e antes desconhecida ou renegada) delas, conduzindo-nos a um plano no qual torna-se possível compreender ou mesmo aceitar algumas atitudes que antes seriam absolutamente condenáveis e repreensíveis. Essa nova ‘visão’ lança o espectador na ‘zona cinza’ de construção do sentido, de elaboração do significado e distinção crítica dos parâmetros pelos quais estará observando o personagem. Sem uma distinção precisa e exata do bem e do mal, é preciso um trabalho muito mais intenso do próprio sujeito de como se situar diante das atitudes que observa”.

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