Reluz!

A produção de joias com selo paraense tem encantado pelo design e pela versatilidade de matérias-primas.

13/02/2015 17:15 / Por: Luciane Fiuza de Mello. Fotos: Dudu Maroja
Reluz!
 
É difícil, mas faça um esforço. Vamos visitar [em pensamento] o período Paleolítico da humanidade, há aproximadamente 2,5 milhões de anos. Também conhecido como o período da “pedra lascada” [quando nossos antepassados descobriram maneiras e ferramentas que possibilitaram produzir os primeiros artefatos], o paleolítico representou um divisor de águas em nossa história. É deste período que estes descobriram que conchas, ostras, dentes e peles faziam colares, como se fossem troféus de suas caças. Não tardou muito [em termos relativos] até que utilizassem esses adornos para agrupar e distinguir grupos.
 
Quando da descoberta do âmbar, uma resina fossilizada, os adornos ganharam um certo “glamour” e exerciam um fascínio natural sobre nossos antepassados, pela dificuldade e raridade com as quais encontravam esta matéria-prima.
 
Na Amazônia, nossos ‘parentes’ utilizavam [e ainda utilizam] traços característicos de suas etnias e/ou das tribos às quais pertencem. Os adornos apresentam semelhanças, mas guardam pequenas diferenças, que são grandes aos olhos de seus usuários e membros das etnias.
 
Ao longo da história, alguns padrões estéticos mudaram, o design evoluiu; surgiram novas matérias-primas. Adornar corpos [não importando sua finalidade], entretanto, sempre exprimiu o desejo de pertencimento – se não a um grupo – e o de chamar atenção. 
 
Evolução do conceito de adorno
 
No Pará, um movimento de valorização dessa história, combinada a um investimento na capacitação e profissionalização de designers, incentivou microempresários e profissionais da área a empreenderem a difícil e valorosa missão de combinar arte, design e valorização da excelência do “feito à mão”. E não apenas. Juntos, eles conceberam uma meta: chegar ao universalismo por meio da narrativa poética de uma ambiência particular de recontar a cultura e a natureza amazônica.
 
 
A materialização dessa nova narrativa sobre a harmoniosa relação entre a natureza do território amazônico e sua diversidade cultural torna o produto final único e coloca no competitivo mercado de joias e da moda peças que se comunicam com o mundo.
 
Ao unir tradição e contemporaneidade, a estética da joia paraense tem sido considerada de vanguarda pela crítica especializada, e atraído um público consumidor diversificado em feiras, exposições, concursos e nos centros nos quais o produto é apresentado.
 
Além de revelar talentos individuais, os profissionais que integram a cadeia produtiva da joalheria paraense, nesse coletivo de empreendedores, ampliam o imaginário cultural ao mesmo tempo em que descortinam novas identidades para o povo amazônico, preservando e expressando o valor inestimável da cultura de um território mágico e real: a Amazônia paraense.   
 
Outra característica particular da joia artesanal paraense está relacionada à valorização dos modos de fazer, com influências de culturas milenares da Amazônia, que ultrapassam as barreiras da estética e do consumo aleatório, consolidando-se como um produto de múltiplas facetas e de qualidade inquestionável.
 
 
Os diálogos dos metais nobres (ouro e prata) com matérias-primas diferenciadas, como fibras, sementes, chifres e outros elementos orgânicos, conduzem os resultados a um vasto repertório nas linhas de criação: joias autorais, étnicas, clássicas, semi-industriais, turísticas, com lapidação diferenciada, gemas coloridas e o conceito de sustentabilidade.
 
Natureza é referência criativa 
 
Um exemplo de peça autoral é o bracelete Pirarara, criado em prata com fibra de jupati pela designer Lídia Abrahim. A peça leva o nome de um peixe e do braço do Rio Pará, que corta o município de São Sebastião da Boa Vista, no Arquipélago do Marajó, referência criativa para a designer. Ela conta que estabeleceu laços afetivos com artesãs da comunidade, as quais trabalham com a fibra. 
 
“O que me levou a criar a peça foi a forte personalidade deste pequeno rio que, como filho da natureza, nos impõe respeito e obediência. Aprendi com ele a respeitar as vontades da maresia. Por isso, esse bracelete é bem mais que um adorno de fibra e prata. Ele é a soberania desse rio bravo, com traço forte de puro Marajó”, revela Lídia.
 
A joia paraense é também um elemento de difusão da cultura local em todo o território nacional. É resultado de talento, design inovador, preservação da cultura e diversidade. É o que diz Rosa Helena Neves, diretora executiva do Instituto de Gemas e Joias da Amazônia (Igama), organização social que gerencia o Espaço São José Liberto e o Programa Polo Joalheiro do Pará, mantidos pelo Governo do Pará e pelo Igama.
 
Com o surgimento do Programa Polo Joalheiro em 1998, lembra Rosa Neves, foi criada uma tradição que não existia no Estado do Pará, a partir de uma ação estratégica de apoio ao design de Joias, “abraçando todo o seu ciclo e contemplando as diversas etapas da gestão deste desenho: sua inspiração, criação, produção, promoção e comercialização”.
 
Inovações identificam a joia paraense  
 
Entre as inovações tecnológicas da joalheria paraense artesanal está sua lapidação diferenciada com grafismos marajoaras, técnica desenvolvida pela lapidária Leila Salame, que desenha simetricamente traços marajoaras nas faces das gemas minerais (pedras preciosas) e, principalmente, em cristais.
 
Outra representação desta verdadeira escola de ourivesaria paraense é a utilização das “gemas vegetais”, produtos orgânicos oriundos de resina e pigmentos naturais, retirados de plantas e processados para utilização em joias e adornos regionais. Criado pelo mestre ourives e pesquisador paraense Paulo Tavares, o produto tem dureza similar à de uma pérola e pode ser encontrado nas cores e com insumos do chocolate, açaí, pupunha, abacaxi, pimenta e outras espécies regionais. 
 
A valorização da ourivesaria artesanal também gerou a criação da técnica da incrustação paraense, desenvolvida por Paulo Tavares e Argemiro Muñoz, e aprimorada pelo ourives Joelson Leão. A técnica substitui a esmaltação e possibilita a obtenção de um degradê especial de cores, a partir da mistura de resina ao pó de gemas minerais e orgânicas, entre as quais coral, lápis lazuli, malaquita, turquesa, pirita, casca de ovo e carvão vegetal.
 
A mais recente inovação, também de autoria de Paulo Tavares e resultado de 10 anos de pesquisa, é a “metal-morfose”, alquimia que transforma resíduos em joias. Por meio da nova técnica, cores diferenciadas são extraídas durante o processo de reciclagem de metais nobres, aliado à incrustação paraense. A partir de sete cores primárias, obtidas nessa fase da pesquisa, foram geradas novas cores que já estão sendo aplicadas na joalheria paraense.     
 
Do Pará para o mundo
 
Concursos internacionais são importantes vitrines para o profissional designer de joias e eles têm destacado profissionais joalheiros do Pará. Para ter uma ideia de quão distante a produção local pode ir, as joias paraenses já foram exibidas em quase todos os continentes, em países como França, Estados Unidos, Coreia do Sul, Portugal e México.   
 
Foi este mesmo conceito de identidade cultural, expressa de forma contemporânea, que levou a designer paraense Barbara Müller a receber, em dezembro de 2014, menção honrosa no “Artistar Jewels Exhibition”, que reuniu o trabalho de 100 criadores e profissionais de diversos países, de 17 a 21 de dezembro, em Spazio Maimeri, na cidade de Milão, na Itália.
 
Naquele espaço multicultural, foram reunidas 240 joias refinadas e criações de joalheria contemporânea e nesta ocasião Bárbara mostrou o bracelete Saturn’s e o colar Pulmão do Mundo. “Mencionaram que havia uma premiação honrosa especial para mim. Foi indescritível, principalmente por eu estar presente no momento. O fato de estar entre tantos designers talentosos do mundo inteiro já estava de bom tamanho. Receber essa premiação e ser aplaudida por todos na cidade que é reconhecida como o templo, o centro do design e da moda é para nunca mais esquecer”, relembra. 
 
Para Barbara Müller, conquistar espaço no Brasil e fora dele não é tarefa fácil, “mas os produtores de joia do Estado têm conseguido, com maestria, obter bons resultados. As joias criadas e produzidas aqui têm característica própria, personalidade e alta qualidade, e têm despertado o interesse de consumidores do mundo inteiro. As pessoas estão reconhecendo e se envolvendo cada vez mais pelo trabalho extremamente único da produção de uma joia. E nada é mais recompensador do que ver a felicidade das pessoas que adquirem as joias, seja para uso próprio ou para presentear. Elas parecem se sentir especiais por portar algo com características tão peculiares”.
 
Outro exemplo do sucesso das joias do Pará foi comprovado em dezembro de 2014, com a divulgação da lista “Top 100” do maior concurso de design de joias em ouro do mundo, promovido pela mineradora de ouro AngloGold Ashanti. A designer paraense Brenda Lopes e quatro universitárias do curso de bacharelado em Design, da Universidade do Estado do Pará (Uepa), tiveram seus projetos selecionados na etapa classificatória da 11ª edição do AuDITIONS Brasil 2014/2015. Elas ficaram entre os 100 projetos finalistas, selecionados entre 905 projetos enviados de todas as regiões do Brasil, e seguem para a etapa final, cujo resultado será divulgado em março deste ano, com os 18 melhores projetos.
Três profissionais paraenses já foram finalistas do Auditions Brasil, em edições passadas. Clara Amorim, Lídia Abrahim e Selma Montenegro receberam as indicações em 2006-2007, 2010-2011 e 2012-2013, respectivamente.
 
A economista paraense Maria Miranda de Oliveira, que atualmente mora na Holanda, compra joias paraenses há cerca de três anos. O que mais a atrai é a sustentabilidade, saber como a joia é produzida e planejada, com a preocupação de não causar impactos ambientais. “E, é claro, a comunicação de cada peça com a natureza, respeitando o conceito de que sem ela não somos ninguém. Para mim o importante é construir e, não, destruir nossas florestas. As joias que são feitas de casca ou de fibras me dizem muito. As de madeira também”.
 
O brilho e o colorido das gemas também são atrativos para Maria Miranda, que é cliente da designer Mônica Matos, de quem já comprou joias em ouro e prata com gemas minerais e também com gemas vegetais de açaí, pupunha e de maniva. “Estou aqui na Europa e tenho mais facilidade de comprar joias industriais. Porém, digo com todo o meu coração, as joias que mais compro são as de prata e do Pará. Não pelo valor, mas pelo teor, pois dizem mais porque são trabalhadas com mais alma!”, acrescenta.
 
Obra de arte e fazer artesanal 
 
Foi a partir das últimas décadas do século XX que a identidade do design de joias começou a ser construída no Brasil. Hoje, essa indústria não só é reconhecida como escola jovem de joalheria contemporânea, como tem sido fonte de inspiração para mercados internacionais.
 
O professor e poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro destaca que a arte é um modo de fazer e de criar mundos. Para a italiana Emanuela Bergonzoni, designer de joias e professora da Academia de Belas Artes de Bolonha (Itália), a joia contemporânea artesanal está muito perto do gesto único da atuação artística e, em conjunto com a experimentação formal, emprega altas habilidades em técnicas artesanais, caracterizadas pela busca de qualidades de execução e pesquisa dos materiais tradicionais e inovadores, conexão de técnicas antigas e modernas.             
 
Segundo Regina Machado, designer de joias e consultora de Design e Estilo do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (IBGM), joias criadas por artistas especializados podem ser destinadas tanto à repetição industrial, quanto à materialização da ideia de peça única, especial, fora de série.
 
Do fazer artesanal das peças únicas da época medieval à multiplicação em ferramentas de prototipagem, as joias, assim como as subjetividades que com elas comungam, transformam-se, atualizam seus conceitos e se reinventam. “O seu consumo fala a linguagem dessa cultura e, por meio dela, opera ‘upgrades’ cognitivos a respeito do espírito de nosso tempo”, afirma Regina Machado.
 
A valorização da cultura amazônica tem renovado o interesse dos consumidores pela geração de produtos que comunicam e materializam a região. A
joalheria contemporânea, olhada no campo da cultura do consumo, explica a consultora do IBGM, destaca o valor do design na construção destes produtos, com a passagem do luxo tradicional ostensivo para a sofisticação das características do design das peças contemporâneas. As joias da atualidade, segundo Regina Machado, são objetos de design com suportes duradouros e afeitos aos processos de construção de sentido, tanto a respeito das individualidades de seus usuários quanto dos valores de sua época. Por meio desses objetos, a cultura ganha uma realidade e a história dos tempos se materializa.
 
Sobre a identidade e o reconhecimento que a joia do Pará tem alcançado, Regina Machado observa que, do ponto de vista de joias brasileiras, não existe nenhuma outra região do Brasil que tenha uma joalheria tão identificada com seu território. “Só tem dois lugares que você pode, realmente, reconhecer: o Rio de Janeiro, pelo estilo e por ser uma escola de joalheria contemporânea, e o Pará. As outras regiões são grandes polos industriais, mas o estilo é um pouco mais universalizado. Não é culpa de falta de talento. É falta de investimento. É um processo, uma construção. E, aqui no Pará, não deixa de ser contemporâneo: tem identidade, tem marca. Só tem marca quem investe na marca e, aqui, está se investindo nessa escola de joalheria”, enfatiza.
 
Adquirir uma joia artesanal é adquirir um objeto único, uma obra-prima carregada de significados e histórias. O consumidor da atualidade está cada vez mais consciente e atento a todas as questões que envolvem desde o processo de fabricação até o conhecimento dos materiais utilizados.
 
A joia do Pará não é apenas objeto de desejo ou símbolo de poder. Ela encanta e seduz com sua personalidade única, tão forte como as raízes das árvores amazônicas; tão arrebatadora quanto o rio que corre em direção ao mar.

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