Salve, Jorge

Três décadas de história e um horizonte cheio de possibilidades. Jorge Eiró revisita suas fases e fala da fisiologia da própria carreira

25/09/2012 12:25
Salve, Jorge

Uma hora de conversa com Jorge Eiró rende um livro; ou um filme, quem sabe um disco; até uma instalação artística. Talvez mesmo tudo isso junto, tamanha a sua diversidade. Arquiteto por formação, artista por instinto e professor graças aos caminhos da vida, Jorge comemora trinta anos de carreira, tal qual um quadro seu – uma mistura de toda sorte de referências, mas nem por isso inacessível.

A ausência de um curso de Artes Plásticas em 1979 fez com que optasse pela faculdade de Arquitetura. A escolha aperfeiçoou seu traço, que já dava seus sinais “antes mesmo de aprender a escrever”. Em 82, ano do surgimento de um “salão de arte”, em caráter competitivo, Eiró inicia de fato sua carreira artística. De uma geração efervescente de Belém, ele foi selecionado para o primeiro salão junto com alguns contemporâneos. “Naquela época, era uma festa. Eu tinha 21 anos. A gente madrugava pra aguardar o jornal que trazia o resultado, os nomes que participariam. Isso marcou muito a minha geração”, conta. O primeiro trabalho profissional, que experimentava a sobreposição de quadrinhos e poesia, anunciou o que viria em seguida: o constante flerte com a cultura pop e com a literatura, que o autor chama de “narrativa visual”. “Isso tá na base do meu trabalho – imagem visual e imagem literária. Os títulos sempre são poéticos, extraídos alguma coisa do cinema ou dos livros”.

O trabalho muito particular rendeu várias exposições individuais e outras tantas participações em coletivas. Por construir uma trajetória sólida em um mercado incipiente, não foi surpresa que universidades o convidassem a ser professor de arte. Os afazeres da vida acadêmica em conjunto com o trabalho na Arquitetura fizeram com que, por um período, Jorge não conseguisse se dedicar às telas. “Durante certo tempo, me ressenti muito, mas isso não me afastou. A produção ficou um pouco limitada, mas, quando voltou, veio com mais gás, mais maturidade, mais refinamento, mais consciência”, avalia. E complementa_ “a carreira acadêmica permitiu o embasamento teórico, técnico e estético pra dar sustentabilidade ao trabalho. Hoje, o professor e o artista são indissociáveis”.

Como em um autorretrato modificável pelo tempo, Eiró imprime seus momentos nas pinturas, o que reforça não apenas um estilo biográfico como também um reflexo dos diferentes tons da sua personalidade. Ora seu trabalho será denso e pesado, ora será sutil e colorido. Hoje, será irônico; amanhã, poético – e nada menos associável ao pintor. Talvez, por isso, a classificação das obras em “fases” não obrigue o autor a encerrar sua contribuição a cada uma delas, por respeito à cronologia. “Eu não sou muito de insistir numa fase. Eu rapidamente esgoto uma fase e já fico pensando em outra. Às vezes, desenvolvo duas ou mais ao mesmo tempo, o que não impede de revisitar em determinado momento, a partir de uma ideia, um sonho ou insight”, explica. Entrar em contato com a sua própria produção, acredita ele, também é salutar. “A gente vai sempre se revisitando. Nesse processo, a gente se estranha. Encontra alguma coisa que você já fez, que estava no escaninho da memória, e se surpreende: ‘nossa, isso é bom!’”.

A ideia de se observar constantemente fez com que o artista mantivesse algumas obras perto de si. Uma delas é o quadro “Sala do Egoísta”, que guarda suas costas quando ele senta à mesa de seu ateliê. Segundo ele, a pintura lhe cativa até hoje. “Ele chama minha atenção pra coisas muito próprias da minha estética, da minha mão... Eu ainda sinto o vigor de estar pintando esse quadro, e isso sempre te dá força. Às vezes, você tá insatisfeito por pintar uma coisa que você acha boba, aí vê um trabalho desses e isso dá gás”. E se a proximidade com seu próprio trabalho aguça o processo criativo, o mesmo ocorre com outras cenas com as quais Jorge se depara e resolve guardar para fazer uso delas. “Eu sou um acumulador de imagens. Tenho pastas e pastas de imagens que eu vou recortando de algum lugar e vou arquivando. De vez em quando, eu recorro a essas imagens e elas acabam dialogando com outras coisas inusitadas”, revela. “Isso também é muito característico do meu processo criativo. Essa colagem pós-moderna de fragmentos do mundo contemporâneo eu vou associando ao meu modo, criando minha narrativa”.

A criatividade emotiva, a linguagem pessoal e a inspiração fazem com que Eiró não imponha regras de produtividade que possam limitar o livre desenrolar do seu trabalho. “Um exemplo disso é que tem dias em que um santo baixa de madrugada e eu recorro a um bloco de papel ao lado da cama, rabisco alguma coisa no escuro mesmo, aí de manhã tento recuperar”, conta. Do mesmo modo que um insight não tem momento certo para acontecer, também é natural que a escolha de uma hora para produzir se torne, na prática, improdutiva. A arte determina seu próprio tempo. “Artista não tem cartão de ponto”, sentencia. “Às vezes, você vem com a maior disposição pra trabalhar e o quadro empaca. Você o deixa encostado, inacabado, e um belo dia você vê que a solução estava ali há muito tempo, só você não tinha sacado”. O pintor se vale de uma canção popular para tentar explicar esse processo: “’eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome, cores de Almodóvar, de Frida Khalo’. É exatamente dessa maneira que eu vou construindo minha visão do mundo, tendo ideias. Pela observação”.

A música, aliás, é companheira constante de Jorge Eiró, no ateliê e na vida. “A boa música cerca o trabalho o tempo todo. Escolho o que eu vou ouvir pensando no que eu quero pintar”, diz ele, enquanto, do computador ligado, soa um standard do jazz. “A música é uma grande parceira. Acho até que como artista, o meu maior defeito é não saber tocar um instrumento. Por outro lado, se eu tivesse aprendido a tocar guitarra, acho que hoje eu estava morto”, brinca.

Porém, das artes que dialogam com o seu trabalho, nenhuma é mais presente que a literatura. Leitor voraz, Eiró já publicou livro de poemas, outro de ensaios sobre a arte contemporânea paraense, e participou, ainda, de um grupo poético-literário na juventude, batizado de Fundo de Gaveta. “Nós éramos um grupo de estudantes que estava com vontade de escrever, naquela idade em que todo mundo é poeta”, diverte-se. “Era um momento mambembe, meio hippie. Todo mundo ia ver o lançamento do livro de um, a exposição de outro, o show do fulano... Todo mundo se prestigiava. Não existiam redes sociais, ninguém tinha carro, e parece que a coisa era muito mais articulada que hoje”, relembra. A paixão pelas letras não ficou guardada no passado. Hoje, o texto está presente sobretudo nos títulos das pinturas – que complementam o sentido delas – além de sutis inserções de palavras nos quadros.

Dividir-se entre as funções de arquiteto, artista e professor, na verdade, multiplicou as possibilidades para Jorge. E nem isso o impediu de buscar uma unidade em todos esses aspectos. A procura desse elemento-chave é tão viva nele que a questão está servindo de base para a sua tese de doutorado.  Quando questionado sobre a maneira como as profissões se influenciam, ele precisa parar e refletir por um momento. Em seguida, pontua: “certamente é uma perspectiva estética. Eles (os profissionais) se articulam pela cor, que costura essas funções. E pela forma, o design das coisas e a maneira como eu as enxergo”.

Eiró não demonstra receio de que a virtualização do mundo e a consequente pressa no consumo de bens artísticos estreitem um mercado de contornos pouco definidos no Brasil. Para ele, isso se relaciona com o lado fetichista da condição humana. “Existe o desejo de possuir. Tem aquelas coisas que você quer apreciar, apalpar, ter uma relação concreta com aquilo. A arte tem muito a ver com esse colecionismo paradoxal ao nosso tempo”. Qual seria, portanto, a dificuldade de se viver a experiência de artífice como única fonte de renda? Jorge explica: “o que você trabalha fora do ateliê para fazer uma exposição é uma verdadeira engenharia”.

Recém-chegado de uma exposição no Rio de Janeiro, o artista diz que o trabalho de produzir as obras e ser agente de si mesmo acaba compensando. “Expor fora abre novos horizontes, dá uma vontade enorme de voltar ao ateliê e dar sequência ao trabalho. Agora mesmo eu estou voltei cheio de ideias, de esboços pra trabalhar”, empolga-se. E reforça: a graça de produzir é o próprio processo. “É ir em frente, pintando. E qualquer coisa que aconteça daqui pra frente vai ser consequência do que você criar”.

Ao pensar sobre seus 30 anos de produção e projetar esse tempo ao futuro, Jorge Eiró não vislumbra nada além do que escolheu fazer três décadas atrás: “continuar produzindo sempre, porque é uma coisa fisiológica”, afirma, e cita um de seus maiores ídolos como referência. “Perguntaram ao (Bob) Dylan sobre o que ele pretendia fazer, lá no início da sua carreira. Ele respondeu: ‘Eu só quero poder pintar um quadro das coisas que se passam por aqui de vez em quando’. Essa é a minha sentença”. Com a lucidez que lhe é peculiar, o artista resume o que o norteia desde sempre, e que permanecerá como determinação basilar da sua obra. “A pretensão é fazer seu trabalho. Tudo em decorrência disso, aqui, ali ou em qualquer lugar. O compromisso consigo mesmo é o que importa”.

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