Síndrome de Cinderela

Quando o assunto é sapato, não há limites aos que consideram calçados indispensáveis à autoestima.

21/12/2012 10:21 / Por: Thiago Freitas/ Foto: Dudu Maroja
Síndrome de Cinderela

Foi um verdadeiro escândalo – de fazer inveja a um roteiro hollywoodiano. A primeira-dama de um país asiático, cuja população morria de fome e vivia na miséria, ganhou as primeiras páginas e manchetes de jornais quando o marido, líder da nação, foi deposto e teve de sair das Filipinas. O palácio onde ambos viviam foi revirado e nele encontrados milhares de pares de sapatos [muitos dos quais nunca sequer haviam sido usados]. Ainda nos closets de Imelda Marcos ,também foram encontrados perfumes e vestidos caríssimos, comprados, supostamente, com dinheiro público desviado dos cofres, segundo as acusações da época.

Imelda Marcos tornou-se símbolo de um consumismo desenfreado. Após a revolta popular que depôs seu marido, o ditador Ferdinand Marcos, o casal foi exilado e, imagine a perplexidade dos revolucionários ao encontrar três mil pares de sapatos, número [com o perdão à seriedade dos eventos, à época] de dar inveja a qualquer consumista de plantão. Quase três décadas depois do golpe popular que pôs fim à ditadura dos Marcos, Imelda retornou às Filipinas [ao contrário do marido, que morreu no exílio] e montou um museu, em Marikina, onde estão expostos 770 pares de marcas como Gucci, Carles Jourdan, Christian Dior, Chanel, Prada e Louboutin.

Da vida real para a ficção, outra personagem personificou essa compulsão por sapatos: a colunista Carrie Bradshaw, interpretada pela atriz Sarah Jessica Parker, do seriado Sex and the City. Para ela, os sapatos são uma espécie de amuleto que acompanham as angústias e felicidades do cotidiano. Achar o par perfeito é o lema de vida da personagem, que não mede esforços [e por vezes, nem o limite do cartão de crédito] em prol do “salto”. Ficção ou não, o estilista Manolo Blahnik [por quem a personagem Carrie Bradshaw nutre uma verdadeira admiração e, por que não dizer, a marca de predileção da própria] e fundador da famosa marca de sapatos que ostenta seu nome, certa vez afirmou que “sapatos são a maneira mais rápida de uma mulher conseguir uma transformação instantânea”. Verdade ou não, até hoje não se sabe ao certo o poder que esse item exerce sobre elas.

Recentemente, o jornal inglês “Daily Mail” revelou uma pesquisa sobre o assunto e o resultado revelava que quase metade das 3 mil entrevistadas julgam outras mulheres pelo que elas estão calçando. A pesquisa relevou outro dado interessante: a estimativa de gastos com sapatos ao longo de uma vida, contando que uma mulher viva até os 70 anos, é de 16 mil libras, ou seja, quase R$ 43 mil. Para tentar descobrir o real significado dos sapatos e revelar algumas histórias curiosas, a Revista Leal Moreira convidou algumas pessoas a abrir seus closets e falar abertamente dessa paixão. 

O poder de um salto alto.

Declaradamente apaixonada por sapatos, a fotógrafa Noélia Neves possuiu uma coleção de aproximadamente 200 pares. Mesmo bem longe dos 3 mil modelos da filipina Imelda Marcos, a quantidade está acima do normal, mas a explicação está na ponta da língua. “Eu me considero uma mulher baixa e, quando estou de salto, sinto que os centímetros a mais me valorizam muito, além de me sentir mais sensual. Sou vaidosa e minha autoestima se eleva bastante. Um salto me deixa mais confiante, mais poderosa e muito mais feminina”, explica. Há alguns anos, por conta de um problema de saúde, ela precisou ficar alguns meses sem usar qualquer tipo de sapato alto, o que a motivou a tomar uma decisão sensível. “Hoje, se eu compro seis pares, separo três pra doar para alguém que precise. Um sapato pode mudar a vida de uma mulher”, revela.

Noélia conta que todos os seus amigos já sabem dessa sua paixão e, nas datas comemorativas, o que ela mais ganha é, sem dúvida, sapatos “Meu closet virou uma espécie de museu. Todos que vão ao meu apartamento ficam namorando meus sapatos”, acrescenta. Contudo, a restrição pelo consumo desenfreado vem por parte dos familiares. “É inevitável. Meus pais brigam pelo exagero e sempre falam que é desperdício de dinheiro. No entanto, acabam me elogiando quando me veem com um salto lindo”, diz entre risos. Os modelos são os mais diversos possíveis: “tenho muitos diferentes, de trançar na perna, com brilhos, cores diferentes, mas o ultimo é um luxo, 21 cm que parece um cristal, todo transparente”, aponta.

As várias formas de cada modelo, os saltos fascinantes e a própria moda em si,que é acompanhar as tendências, combinar e ‘descombinar’ com outros acessórios é, segundo Noélia, como fazer mágica com os pés. Ela já fez algumas loucuras para conseguir um par irresistível – a “extravagância” mais recente envolveu um par exclusivo do designer Fernando Pires, que custava cerca de 1.500 reais. Para comprar o tão desejado calçado, ela precisou utilizar seu poder de persuasão. “Logo quando o vi, fiquei apaixonada pelo modelo, mas uma mulher já tinha se apoderado. Então, me aproximei dela e comecei a falar que ele não era nada de exclusivo, pois na véspera estava num evento e tinham duas mulheres usando o mesmo modelo e da mesma cor. Ela pensou e largou o sapato na hora. Eu não pensei duas vezes, corri e paguei. Quando estava saindo, a mulher estava louca da vida porque percebeu o que fiz. Saí de mansinho”, relembra.

A fotógrafa confessa que, até agora, esta sua paixão não lhe trouxe qualquer malefício, mas é preciso ficar atenta ao delírio do consumo. “Por enquanto, consigo lidar de forma saudável. Mas confesso que de vez em quando, faço algumas estripulias”, frisa, acrescentando que, em uma viagem para o Rio, ela trouxe mais de 20 pares na bagagem. Questionada sobre quais são os próximos pares para entra para a coleção, ela é categórica. “Todos pelos quais eu me apaixonar e meu dinheiro puder comprar”, brinca.

Um modelo para cada ocasião

Entre sapatilhas, rasteirinhas, saltos e sapatos sociais, a jornalista Ana Paula Azevedo possui mais de 100 pares. Ela conta que, desde criança, era apaixonada por qualquer tipo de sapato e, com o tempo, esse vício só foi crescendo. “Quando eu era pequena, eu via minha mãe se arrumando e ficava completamente encantada quando ela colocava um salto alto. Como toda a menina, esperava ela virar as costas e sempre experimentava alguns modelos”, relembra. Hoje, a jornalista transmite essa sua paixão para a sua afilhada, de apenas 10 anos. “Compro vários sapatos e sapatilhas para ela que simplesmente adora! Mas acredito que ela ainda não está na fase de usar salto alto”, pondera.

Mesmo com uma rotina bem corrida, a jornalista não dispensa um belo par de saltos altos. “Mesmo com uma roupa simples, você coloca um salto alto e já consegue chamar atenção. Quando sei que vou ter que ficar muito tempo em pé, eu uso uma sapatilha básica, mas o salto sempre esta lá disponível para qualquer emergência”, revela. Segundo Ana Paula, não é possível afirmar que o motivo que leva as mulheres à compulsão por sapatos seja um só, mas a causa é sempre a mesma: uma fuga dos problemas reais. “Acho que o importante é saber o limite. O exagero definitivamente não é saudável. No mais, um par de sapatos sempre é bem-vindo”, acredita.

Eles também amam sapatos?

Para o estudante de arquitetura, Felipe Quincó, os sapatos têm o poder de contar histórias e relembrar momentos especiais. “A maioria dos sapatos que tenho compro em viagens, então, cada um me lembra um lugar, alguém ou alguma situação única. Nunca considerei fazer uma coleção, mas sempre amei comprar sapatos e sempre estou pesquisando novos modelos e marcas, dificilmente saio de um dia de compras sem um par”, diz Felipe, que contabiliza o número de pares em seu armário: 50 modelos. O estudante tem um carinho especial por todos eles e prefere os de cores mais claras e, acredite, eles estão sempre limpos. “Cuido muito bem deles! Sempre procuro comprar sapatos de cores e materiais variados para combinar com qualquer situação ou roupa que eu use. Sim, sou muito vaidoso e detalhista”, garante.

Mas do que uma terapia, Felipe acredita que comprar sapato já foi e ainda é motivo de muita diversão. “Não acho que eu seja um consumidor desenfreado. Comprá-los não prejudica em nada a minha vida, então, a maioria das vezes que gosto do sapato, acabo comprando. Mas também não saio comprando sapatos loucamente por aí, compro quando gosto mesmo!”, diz. O estudante tem vários sapatos antigos que, segundo ele, sempre são os mais confortáveis, o que dificulta o desapego. “Quase todos os sapatos que tenho, sei onde comprei e quanto custou. O mais antigo é um mocassim bege e azul. Toda vez que calço, vejo que ele já está superantigo, mas não consigo me desfazer dele. É conforto total”, detalha. 

O vício por sapatos vem de família e foi um traço herdado do pai, o empresário Edgar Quincó. “Ele é um homem extremamente vaidoso, sempre anda impecável e combinando tudo. Acho o máximo e admiro isso nele, pois, apesar da vida super corrida, sempre viajando, ele sempre está arrumado elegantemente sempre. Meu pai é meio exagerado e tem muitas roupas, sapatos... e fui criado assim...”, conta Felipe, que explica ainda que seus familiares já estão acostumados. “Todos encaram isso normalmente, meus primos e eu sempre estamos mostrando as novidades adquiridas uns para os outros”, acrescenta.

O interesse por sapatos, até um tempo atrás, era exclusivamente feminino. Felipe acredita, porém, que o homem contemporâneo se tornou cada vez mais vaidoso, e isso fez com que a indústria da moda ficasse superaquecida. “Hoje, o homem encontra uma variedade enorme de acessórios e roupas, e isso faz com que ele também ceda e acabe comprando um pouco mais, como a mulher. Há opções de sapatos de várias cores, modelos, materiais e isso faz com que ele perceba que não existe só sapato preto de bico quadrado para usar”, completa. Para os amigos e familiares, Felipe deixa uma dica para os presentes de fim de ano. “Estou de olho em um Stubbs & Wootton e, claro, sapatos da Zara, modelos lindos!”, ri.

Compradores compulsivos.

Segundo a psicóloga e neuropsicóloga Márcia Araújo, doutoranda em “Teoria e Pesquisa do Comportamento”, o desejo em si é saudável. A questão é não deixar que ele se torne patológico. “O malefício surge quando há um descontrole do impulso de consumir, o que pode caracterizar uma compulsão. Muitos compradores compulsivos têm distúrbios de humor, ansiedade excessiva e depressão”, analisa a profissional que acrescenta que as “crises” de consumo podem ser desencadeadas por perdas afetivas ou situações que estimulem o sentimento de menos-valia.

Até os dias de hoje, há pouco consenso sobre o tratamento apropriado para o comprador compulsivo. No entanto, alguns estudos indicam que as técnicas da terapia cognitivo-comportamentais podem ser úteis. “Elas incluem geralmente três componentes principais: habilidades de resolução de problemas para ajudar a gerar respostas diversificadas ao estresse, técnicas de reestruturação cognitiva para corrigir os pensamentos irracionais associados ao comportamento impulsivo e a prevenção de recaídas para ajudar a identificar situações de alto risco e gerar planos alternativos”, detalha a psicóloga que frisa que, em alguns casos , pode haver a necessidade de terapia medicamentosa.

Não é fácil conviver com uma pessoa que apresente um comportamento compulsivo, dessa forma, é primordial a busca por informações sobre o problema, aprender o máximo sobre o transtorno, suas causas e seu tratamento. “Alguns não aceitam serem portadores de algum problema, julgam-se capazes de controlar o impulso na hora que quiserem e não procuram ajuda. Família e amigos podem ajudar ao mostrar a necessidade de tratamento”, completa Márcia.

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