Sob o signo do destino

Dona de uma voz inesquecível e marcante, Sammliz mostra que sabe o que quer. Sempre soube.

15/10/2013 18:17 / Por: Camila Barbalho/ Fotos: Dudu Maroja
Sob o signo do destino

Do alto de um prédio em construção, no centro de Belém, Sammliz destoa da paisagem. Destoa e parece sempre ter sido parte do cenário, já que ela mesma está em construção também. Nem todos têm a sorte de um caminho convicto entre quem se quer ser e já, de fato, sê-lo. De um ponto a outro, não raro, há percalços, tropeços, dúvidas. Não para Sammliz, porém. Nascida para o que é, ela traz à mente a ideia de predestinação. Difícil para a cantora é pensar em algum momento em que a arte de combinar sons não a envolvesse por completo. E pouco importava a referência: o clarinete do avô, os cultos com a tia evangélica, os discos de samba com a mãe, as fitas de rock compradas pelo pai... O rock. Foi no esbarrão com as guitarras distorcidas que ela simplesmente soube seu papel no mundo. Por simpatia, o destino abençoou o sonho de ser artista e não houve passo que contradissesse seu rumo. Basta vê-la no palco, à frente do Madame Saatan – seu “conjunto de metal”, como ela chama. A voz é forte, a presença é imponente. O sorriso da cantora esbarra nas orelhas. Sammliz não precisa da cara de mau que personifica o heavy metal. A razão é simples: não há personagens em frente aos muitos fãs, conquistados ao longo de dez anos de trabalho.

Também é sem máscaras que Sammliz recebe a reportagem da Revista Leal Moreira. Desmitificando outra vez os estereótipos de rockstar, ela fala baixo, sorri muito, olha nos olhos. Nenhuma resposta é ensaiada, nenhum discurso é pronto. Às vezes até se perde nas memórias misturadas da infância, de tantos palcos visitados, das dores e delícias de estar na estrada fazendo o que se ama. “Como foi isso? Como foi aquilo? Em que momento?”... Não sabe. “Foi acontecendo”, e sorri. O sorriso, dá pra ver, é honesto. É reflexo da satisfação de ter abraçado com tal naturalidade cada empurrão da vida rumo àquela máxima nietzschiana. “Torna-te quem tu és” é um conselho que Sammliz jamais deixaria de seguir. Quando os gravadores são desligados, ela solta no ar – e confirma, meio sem querer, meio para si: “a gente não pode abrir mão de ser feliz”. Confira a conversa, onde ela compartilha a trajetória, lembranças, aforismos e planos para o futuro.

Como surgiu sua relação com a música?

Minhas lembranças mais remotas da infância estão conectadas de alguma forma com a música. Tenho nítidas lembranças de minha mãe cantando para mim e meus irmãos na hora de dormir – e tempos depois era eu quem fazia meu irmão mais novo dormir na rede, cantando pra ele. A vitrola vermelha, os vinis que tinha em casa nos quais eu gostava de mexer – escondida da minha mãe, que não queria que eu estragasse nenhum... Minha mãe escutava sambas, músicas francesas, Burt Bacharach. E ela tinha o disco da trilha sonora do Hair, que eu adorava. Só tive acesso ao rock de fato quando meu pai passou a comprar fitas K7 pra ouvir nas nossas viagens de carro. Ele não tinha muito critério, mas comprava coisas como Queen, Pink Floyd... Tudo “para as crianças” (risos). Eu ficava paralisada ouvindo aquilo. Felicíssima.

Você consegue lembrar em que momento surgiu algo que lhe dissesse que você seria cantora?

Eu sempre soube. Quando eu era criança, eu e minha irmã passávamos férias na casa de uma tia em Santa Isabel. Ela levava a gente aos cultos evangélicos onde ela morava. A gente, apesar de adorá-la, detestava aquela programação. Curiosamente, a vontade de estar em um palco surgiu fortemente enquanto eu via aquelas pessoas cantando fervorosamente ali na frente. Lembro também a primeira vez que vi o Ney Matogrosso, ainda na infância. Fiquei chocada. Perguntei pra minha mãe o que ele era (risos). Ela disse “ele é artista”. Isso ficou na minha cabeça. Depois, isso se acentuou realmente na temporada que passei no Rio de Janeiro, na época do primeiro Rock in Rio. Eu tinha uns oito anos e acompanhei tudo ao vivo pela tevê. Fiquei louca vendo todas aquelas bandas, Queen, AC/DC... A Nina Hagen estava com um visual muito absurdo, e mais uma vez eu perguntei o que ela era. Mamãe respondeu igual, que ela era “artista”. Na minha cabeça, ficou aquilo: “ah, é isso que é ser artista... É isso que eu quero fazer!”.

Quando veio a necessidade de começar a compor?

Eu lia muito. Lia todo tipo de livros, incluindo os impróprios, que eu dava um jeito de surrupiar da biblioteca de casa. Aí chega um momento em que você quer fechar esse ciclo: lê, depois escreve. E sempre gostei de escrever. Tinha diários que eu jurava que eram secretos, escrevia histórias fantásticas... Quando eu botei na cabeça que eu iria montar minha primeira banda, lá pelos 14 anos, eu comecei as minhas primeiras tentativas de escrever algo pensando em música. Era uma banda de punk, hardcore, formada só por garotas, chamada Morganas, com temas politizados e feministas. Era um mundo novo – de ideias, música, fanzines, revistas e pessoas diferentes – que se abria pra mim. Comecei tocando baixo, mas eu tocava muito mal (risos)...  Aos poucos as coisas foram me empurrando para o vocal, e eu também fui me empurrando. Aí veja a situação: eu era uma menina de classe média que ensaiava na periferia... Como eu, que nunca tinha vivido aquilo, poderia escrever sobre aquela realidade? Isso me deixava profundamente angustiada. Daí surgiram minhas primeiras letras. Eu tinha a necessidade daquilo pra me expressar.

Como foi o processo de surgimento do Madame Saatan?

Eu e Ícaro Suzuki – baixista original do Madame Saatan, meu parceiro na época – estávamos caçando novos músicos para um projeto. Queríamos uma banda de rock que pudesse agregar elementos da nossa região, e passamos um bom tempo em Belém atrás das pessoas com as referências certas para somar com as nossas. Achamos Ivan Vanzar, Ed Guerreiro e Zé Mário, que fazia faculdade comigo. Eu estava estagiando no setor de Artes Cênicas da Unama. O Paulo Santana, que coordenava o departamento, ia fazer uma montagem inspirada no Alfred Jarry – o espetáculo “Ubu, Uma Odisseia em Bundalelê”. Ele disse que precisava de alguém pra fazer a trilha sonora. Não pensei duas vezes: “eu! Já até tenho a trilha na cabeça”. Não tinha absolutamente nada (risos). Já estávamos ensaiando nossas primeiras músicas, mas a banda nem tinha esse nome. Quando ele viu a banda, achou que deveria incorporá-la ao espetáculo. Assim fizemos nossa estreia: tocando ao vivo a trilha da peça. Viemos com essa pegada forte, tensa. Não houve nenhuma preocupação com como devíamos soar. Simplesmente fizemos. A temporada acabou em dois meses, e foi sensacional. Aí de lá, não paramos mais.

Não tinham muitas mulheres na cena roqueira de Belém na época. Fez alguma diferença ser mulher, nova, bonita, num circuito extremamente masculino?

Não senti a menor diferença. Eu simplesmente nunca parei pra pensar nisso. Eu sempre estive nesse meio. Da infância pra adolescência, eu era espectadora; e logo em seguida, comecei a carreira. Nunca me coloquei nesse papel de raridade. Pensando agora, realmente não tinha muita mulher logo que eu comecei a vida no rock. Eram poucas, mesmo na plateia. Mas eu sempre imaginei que eu estaria no palco.

Como foi a vivência com o grupo quando vocês foram pra São Paulo?

Foi lindo e terrível (risos). A gente viveu algo que nunca mais vai se repetir nas nossas vidas. Foi uma vivência muito intensa, pessoal e musicalmente. Passamos seis anos em São Paulo, sendo que, durante três deles, moramos todos juntos. Foi uma época maravilhosa, que nos trouxe muitas felicidades – e que, claro, também teve seus momentos difíceis. Não havia nada que nos prendesse a Belém e sabíamos que, se ficássemos aqui, iríamos estagnar. Queríamos mais, queríamos a estrada. Fomos para São Paulo para participar de um projeto no Sesc Pompeia, e para uma curta temporada de três meses. Acabou se estendendo porque as coisas foram acontecendo... Durante esse tempo, produzimos um disco que adoramos e que nos rendeu muitos frutos, viajamos por quase todo o Brasil conhecendo e trabalhando com gente incrível, tocando para todo tipo de público em pequenos e enormes festivais. Aprendemos muito viajando, trabalhando com quem trabalhamos. A vida na estrada é uma loucura.

Por que vocês voltaram?

Voltamos pelas circunstâncias. Ivan recebeu uma proposta de trabalho muito boa no Sul do país, e nós demos todo o apoio, mas quebrou um pouco as pernas. Depois, o Ícaro sofreu um acidente, quando estava de férias aqui. Foi quando decidimos nos recolher e repensar. Decidimos voltar. Nem circulamos o disco novo como gostaríamos por conta dessas coisas. Ficamos frustrados, claro, tivemos que cancelar praticamente um ano de shows. Passamos por processos, ajustes, mudamos a formação. Mas a vida é assim. A gente aprendeu a não dramatizar as coisas. Não tem tempo pra ficar se lamentando. Aproveitei a volta pra cá pra tocar meu projeto solo, que era uma coisa que eu já tinha vontade de fazer há tempos. No fim das contas, voltar foi a melhor coisa que a gente fez. Estamos em movimento.

O que vem nesse novo projeto? O que ele fala de você?

Esse projeto solo é algo que sempre acalentei. Sinto que chegou a hora de dar vazão a muito mais daquilo tudo o que gosto e quero experimentar. Coisas que sou eu também, mas que não cabiam no Madame. O meu trabalho solo sou eu despida, eu indo ao encontro de um novo ciclo. Estou compondo há bastante tempo, e este disco vai ser feito sem pressa. Já estou trabalhando as primeiras músicas em estúdio e chamando músicos com quem tenho sintonia, para gravar e ensaiar. Já estive muito ansiosa pra ver o trabalho pronto, e agora estou muito tranquila e feliz com o rumo que as coisas estão tomando. Não poderia imaginar melhor momento e lugar para trabalhar nele. Tô experimentando. É um momento de construir. Começar de novo... [cantarola a música de Ivan Lins]

O que você sente quando está no palco?

Palco é um lugar onde me sinto à vontade e feliz. Uma das coisas mais gostosas é aquele sentimento minutos antes de subir, misto de ansiedade e prazer. Ainda é o mesmo sentimento do início. Eu não consigo me imaginar no palco sem sentir as coisas. É quente, é uma coisa muito intensa, muito única. Eu me lembro de subir no palco a primeira vez, tímida, insegura, mas muito feliz de estar ali. Sempre foi assim. O palco é um lugar para se divertir, trocar energia e ser o que se é. E isso é completamente viciante. É um momento em que estamos exatamente na nossa função. Logo que acaba, você quer de novo. Até hoje me choca ouvir uma multidão cantando uma música que eu escrevi. Arrepia, me emociona, me impressiona.

 

O que você vê no seu futuro?

Muitos filhos e muita riqueza (risos). Tocar, tocar muito. Madame tem show pra fazer, eu tenho esse projeto pra fazer. Vamos articular essa turnê internacional, que provavelmente vai rolar. Fui convidada para outras coisas muito legais, mas que ainda não posso anunciar... Tô cercada de gente que eu amo, na cidade que eu amo – que tem muitos problemas, mas não há nada como nosso lar. Então quero meus filhos, discos, meus gatos... E quando eu estiver velhinha, com as tatuagens todas enrugadas, eu ainda estarei fazendo a mesma coisa que sempre quis fazer. Desde quando eu era só uma criancinha.

Agradecimentos

Salão Cassius Martins

Produtora de moda • Ana Carolina Valente

Leal Moreira • Torres Floratta

Mais matérias Local

publicidade