Uma cozinha de memória antiga

Da Osteria Francescana, que resgata sabores há muito esquecidos, nascem conceitos inovadores.

16/08/2013 15:16 / Por: Sara Magnani - Tradução: Lívia Mendes/ Acerbi Moretti Photography
Uma cozinha de memória antiga

Uma vaidosa enguia recorta o tranquilo vale do rio Pó, porque quer conhecer o mundo e suas origens. Deita-se entre as cebolas e o milho doce para encontrar seu habitat natural e, então, se derrete sob o sol, coberta de saba, concentrado de maçã e cebolas queimadas. Essa é a história contada no vídeo “Ritorno”, apresentado no “Identitá Golose 2011” (festival gastronômico italiano), por Massimo Bottura.

Em primeiro lugar, é a mente que tem de ser saciada e satisfeita, ela é que evoca lembranças distantes e, depois, o corpo. O chef da Osteria Franciscana, conhecido mundialmente como um dos principais representantes da gastronomia italiana e recentemente eleito, pela revista especializada “The Restaurant”, como o “terceiro melhor do mundo”, acredita no silêncio, no leite puro, na névoa e na umidade, em “muitos feitos, poucas palavras”, em produtos que, para serem saboreados ao máximo, devem repousar, descansar ao máximo.

Ele acredita na espera, essa que trazem na pele os pequenos produtores locais, os artesãos, os pescadores, os açougueiros que, pacientemente, esperam o crescimento das uvas, a cura do produto, a matéria se transformar em substância.

Em Via Stella, no centro histórico de Módena, pequena cidade da Emilia - Romagna, terra de pequenas e grandes excelências, de produtos únicos no mundo, de artesanato e gastronomia, a Francescana recebeu o cobiçado prêmio do Expresso 2011, o Grande Prêmio da Academia Internacional de Gastronomia e foi premiada com o terceiro melhor restaurante do mundo, de acordo com a revista Restaurant, em 2013.

Explosão de arte nos pratos

A aranha de luzes, assinada pelo criativo Philippe Starck, se levanta em todo o seu esplendor com uma fina suntuosidade ao entrar no restaurante, recém-aberto depois de uma mudança de imagem. “Na Osteria Francescana, não há vista para o mar, para as montanhas ou para os campanários. Melhor: há uma estreita ruela medieval. As pinturas e as fotografias se transformam em nossas janelas, não somente para os hóspedes, como também para os cozinheiros e para qualquer pessoa que entre em nosso mundo. São paisagens de ideais, que ampliam os horizontes e abrem possibilidades”.

A forma, o instrumento que transmite uma mensagem num desenho conceitual impregna a atmosfera. As esculturas de Sandro Chia, figura destacada da vanguarda italiana, te observam enquanto os olhos, incapazes de parar, captam o sentido da arte; as pinturas de cores de Chifano; a Luz de Campari, de Ingo Maurer... Na sala de jantar principal com teto artesanal, aparece a obra silenciosa de Vezzoli sobre Edith Piaf, “La Vie en Rose”, que media citações históricas e arte figurativa, tal qual o chefe seus pratos.

“Todos os dias, vejo meus chefs construírem seu futuro, comprimindo tanta vida de uma vez só: um contínuo jogo de cores com matizes. Nos pratos, se descrevem instantes perfeitos”, diz Bottura.

Inspirado pelo prato quebrado de Limoges (também fez um que simula uma gota de água caindo e formando ondas concêntricas) aparece “Oops”, o bolo caído. Mostarda, polpa e casca de limão salgada, alcaparras salgadas e alcaparras doces, gotas de azeite aromatizado com pimenta e orégano. O Mediterrâneo inteiro em um só prato. E torta de limão com sorvete de lemongrass, que cai e se quebra. As alcaparras se combinam com uma doçura que não parece pertencer ali.

O café da manhã dos viajantes

“Os trabalhos conceituais que penduramos em nossas paredes não são decorações, são a chave para ler nossa cozinha, nossos métodos e, inclusive, nossa loucura”, revela Massimo. Los trenes salen al amanecer (Os trens saem ao amanhecer) é o novo prato que a Osteria Francescana oferece. “O filho do dia que está por vir”, diz Massino, “que nunca nasceria se o Alberto (um dos chefs) não tivesse contado como, sendo ele um viajante, era duro encontrar – enquanto corria para pegar sua namorada no trem – um cappuccino decente àquelas horas.” Os trens vão para diferentes direções, atravessando a península, entre paisagens que ainda estão se formando, “assim como nossa mente está trabalhando desde às cinco da manhã”, afirma. E pensa em dedicar uma placa aos viajantes – a todos – um reconhecimento ao sacrifício dos comensais que cobrem longas distâncias para se deleitar na Osteria Francescana. Uma espécie de paisagem abstrata de cappuccino e croissant com merengue no café, ou de chocolate com biscoito crocante, “que combina o rigor e a dureza dos trens que saem ao amanhecer, sob um sabor terno e familiar”. É um café da manhã abstrato. Um prato dedicado a essa hora do dia. “No meu futuro, há mais futuro”, diz o chef.

A abordagem

Disciplina e rigor, junto com competências e muito trabalho, são respirados continuamente no serviço do restaurante italiano – hoje o mais popular no mundo. Uma brigada de vinte jovens que experimentam, correm, lavam e cortam, entre as panelas fumaçantes de carne e as obras na sala.

Alguém corta o culatello (carne de porco salgada): primeiro o nariz o cheira para depois vê-lo os olhos. É vermelho, 48 meses, das terras Polenise, um pequeno povoado às margens do rio Pó, no território de Parma. Derrete na boca. Outra pessoa pica lemongrass e explica que, em seguida, vai acrescentar outros ingredientes e deixará repousar durante uma noite inteira para que os sabores tenham tempo de chegar “a um acordo”. Apesar do frescor e da alegria dos trabalhadores, é um trabalho duro ficar sob o calor da cozinha: ou o fazem por paixão, ou acordam às seis da manhã para terminar, guardando as facas à uma da madrugada.

Chega, então, a costela de porco, tipicamente negra, vindo da Romagna, que se alimenta de raízes, bagas e farinha de milho. Refogada em um molho de vinagre e em seu próprio caldo, acompanhado de purê de batatas e alho, beterrabas e trufas. Basta a ponta do garfo para sentir o sabor concentrado, enchendo o paladar e a boca de sentidos e emoções. Como nossos avós, que para degustar melhor se deleitavam de noite com a metade de um bombom de chocolate, deixando a outra para o dia seguinte.

Então, das mãos rápidas de um chef, surge o Globo, deliciosamente galante: uma fusão de leite com menta, um mundo entre os pedaços de merengue perfumado com flores de camomila. A consistência se dá com apenas um toque, o paladar se derrete e libera um ligeiro sabor ácido, que imediatamente te leva à outra colherada. Que sabor é esse? Perguntamo-nos, imaginando. Limão, puro limão.

Um sorvete de cerveja com destilado de pêssego e biscoito de café e vignola. Outra sobremesa que inspira a torta Barozzi (um bolo típico de Módena), onde se colocam café, pinhões, chocolate soffiatto e cerejas.

Uma pequenina Madeleine com sabor de chá. A pimenta de Sichuan, do sudeste da China, com aroma de bergamota. Um krpafen em miniatura com creme e aroma de café. Um bombom de chocolate de avelã e outro de frutas do bosque, que lembram aquelas gelatinas coloridas de trinta anos atrás. Exatamente essas.

Dê-me bebida!

Conversamos com Beppe Palmieri, sommelier e maitre da Francescana, mas imediatamente somos corrigidos e ele deixa claro que não gosta de nenhuma das duas nomenclaturas. Ele está na sala e na bodega. Ponto. “Acho que, no futuro dos grandes restaurantes, está surgindo uma nova figura, um híbrido, porque servem diferentes habilidades enquanto há uma grande cumplicidade com os outros colegas da cozinha para que se crie um ambiente adequado de trabalho”. Apesar de a cultura girar em torno de temas eno-gastronômicos, cresceu muito nos últimos anos uma elite de apaixonados. “Frequentemente, utilizamos uma linguagem incompreensível, mas meu trabalho é aproximar o conhecimento que tenho sobre um vinho e colocá-lo ao alcance de todos”, confessa. Seu cliente preferido? O tímido. O que não levanta os olhos, mas demonstra algo. “Encontro clientes russos de Moscou, do Alaska, japoneses de Hokkaido, californianos, italianos. Com cada um deles tenho de ter um enfoque diferente”.

A bodega da Francescana oferece um sistema notável de vinhos naturais, biológicos e biodinâmicos, assim como os grandes vinhos da Itália e da Califórnia. O ponto de referencia é ainda a França. “Longa vida à Itália, mas temos de ser capazes de reconhecer que na França é onde se desenvolveu uma cultura de vinhos de qualidade!”.

Combinado ao prato de talharins com rangu de língua, tripas e rabo de boi, Palmieri nos oferece cerveja de castanha, produzida por uma comunidade de jovens deficientes de Granaglione, terra de fronteira celta. E ainda nos mostra um segredo: um destilado de genciana, com aromas de musgo, folhas molhadas vermelhas e amarelas, bagas de zimbro e cogumelos. O olfato se transforma em lembrança, a lembrança de um passeio pelo bosque.

Vanguarda do Mediterrâneo

Uma cozinha de território e de tradição, mas de forma alguma estática. Uma tradição vista a 10 km de distância, dinâmica, resultado de experiências em constante evolução e investigação. Essa é a definição da cozinha de Massino Bottura.

Chamativa, mediterrânea, flagrante, une-se ao território e o faz seu para ir além. Suas lembranças de infância se transformam em pratos. Nunca se cansa de provar e experimentar, num casamento entre tradição e experimentação, dando visibilidade aos pequenos produtores e artesãos locais.

Massimo começou a trabalhar com produtos petrolíferos na empresa da família, depois começou a gestão de um restaurante em Nonantola e se fez reconhecer imediatamente na área, com tudo o que aprendeu de sua tia Lídia. Então, decidiu se dedicar aos conceitos básicos da cozinha francesa feitos por George Cogny e, a partir daí, a um encontro em Montecarlo com Ducasse, líder indiscutível no mundo da alta cozinha, com quem aprendeu uma imensidão de visões e essa absoluta dedicação e qualidade que o acompanham ao longo da vida.

Em 1995, começou com o negócio da Osteria Francescana e, em 2000, teve um visitante inesperado: Ferran Adriá. Massino diz que foi ali que começou a entender como o grande mestre revolucionava a gastronomia, com seus petiscos e seu espírito irreverente “misturando doce e salgado, quente e frio, suave e crocante”. “Um gênio, uma mente em constante movimento em busca de uma perspectiva, uma ideia, um princípio”, recorda Massimo.

Costurar o fio entre o artesanato e as instituições. Visibilidade à la italiana

Metade dos eventos gastronômicos neste período está vinculada ao território da Emilia para reconstruir e ajudar as vítimas do terremoto que assolou o Vale do Pó e a região da Emília Romagna no fim de maio de 2012.

Massimo diz que na Itália é difícil: existem milhões de críticos, em família, em casa, entre amigos e no mundo gastronômico. “Temos um paladar afinado”, acrescenta. Também nos explica que serviria a um sistema gastronômico que ligue a cadeia entre o artesanato e a entidade, entre o turismo e a agricultura, que abrisse um diálogo e fizesse descobrir os tesouros da infinita dispensa de comida italiana, atraindo grandes comunicadores do mundo. “Um sistema que lute sério contra o Italian Sound, aqueles produtos que remetem à “italianada” (massa e pizza), mas que se produzem em outros lugares do mundo com pouca qualidade, porém com competitividade de preços”.

“Gosto de sonhar”, admite o mestre, “mas se penso que brigamos pela paternidade do tortellini, volto a colocar os pés no chão”.

Esse era um ditado popular de Módena: “A la gogna la rusgon”- quem pegar é o dono. Tal qual a maçã, que antes se comia até a medula e o núcleo era jogado fora e ficava coberto de poeira. Aí, vinham crianças, sopravam o pó e comiam o resto.

Receita

Uma enguia ao longo do rio Pó

Ingredientes

Enguia

• 1 enguia de dois kg;

• 50 ml de Amarone (vinho típico do Vêneto)

• 50 ml de Aceto Balsâmico Villa Manodori

• 50 g. de Salsa Kabayaki preparada com pedacinhos da enguia

 

Creme de Polenta

• 100 g. de farinha de Polenta Mulino Marino

• 300 g. de leite “bianca modenese”

• 200 ml de água mineral

• 40 g.de azeite de oliva extra virgem Villa Manodori

Cinzas de Cebola

• 500 g. de cebola

• 300 g. de pinoli

• 100 g. de tinta de lula

• 50 g.de salsa kobayaki

Modo de fazer

Enguia

Limpe e corte a enguia em pedaços, feche-a em um saco de vácuo e cozinhe em banho-maria a 50°C por 30 minutos. Abra o saco e retire a enguia. Prepare o molho com a Salsa Kabayaki, o Amarone e o vinagre. Regue bem a enguia com esse molho e leve ao forno a 180°C. Quando o molho começar a engrossar, repita três vezes.

Creme de Polenta

Misture o leite e a água e deixe ferver. Com a ajuda de uma peneira despeje a farinha. Sempre mexendo, cozinhe (40 minutos) e tempere com sal a gosto. Retire do fogo, coloque a polenta em um Termomixe misture bem a 45°C, durante 20 minutos, emulsionando com o azeite.

Cinzas de Cebola

Frite a cebola bem picadinha, até ficar ligeiramente queimada. Misture com os outros ingredientes até obter uma pasta cremosa e preta. Estenda em um silpate leve ao forno a 160°C por 8 minutos. Após esse período, colocar em um desidratador durante 48 horas. Moer em um pilão até obter a consistência desejada.

Para o concentrado de maçã Campanina:

Passe pela centrífuga 500g de maçã Campanina. Coloque o suco em um Rotovapor e deixe reduzir 50%.

Montagem do prato/apresentação:

Coloque a enguia bem envernizada (o molho dará essa aparência) e quente (melhor servir na hora em que ficar pronta). No prato, ao seu lado, um pouco do concentrado de maçã Campanina e um pouco de polenta cremosa. Coloque uma colher de chá das “cinzas de cebola” em duas extremidades opostas da fatia da enguia. Sirva em seguida.

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