Uma relíquia de família

Atravessando a parte mais antiga da casa, entramos no mundo mágico dos barris, que estão em toda parte.

14/08/2014 11:55 / Por: Sara Magnani - Tradução e versão de Lorena Filgueiras/ Fotos: AcerbiMoretti Photography
Uma relíquia de família

Todos eles têm um pequeno buraco localizado na parte de cima, que fica coberto por uma toalha branca de algodão, cuja "função" é cuidar do precioso conteúdo do barril, protegendo-o do pó e outras impurezas. Todos os barris estão lá, em repouso, arrumados em fila, respirando oxigênio puro. Em um dos barris, há um coração e duas iniciais - testemunhos de uma fascinante e antiga história  de amor entre dois jovens. "Este barril está em nossa família há pelo menos cem anos, mas certamente é muito mais antigo que isso", diz Daniele Bonfatti, produtor desta verdadeira [e deliciosa] joia.

O ambiente onde o vinagre é produzido é o oposto de onde um vinho é produzido. É no sótão, sob o telhado, porque é fundamental que a temperatura não seja constante e sim dependendo do ambiente e das mudanças de temperatura externa. Não importa se a temperatura for de zero grau [durante o inverno] para 35 graus [no verão escaldante] - os barris estão sempre abertos, a fim de facilitar o processo natural. "Eles têm que respirar oxigênio ou não conseguimos produzir vinagre algum", adverte Daniele. O aroma que impregna a "Acetaia" é muito forte. E cada barril tem o seu próprio perfume característico.

Cada barril tem sua própria história

Daniele Bonfatti é um dos três sócios da "Acetaia de Cristo", uma das "acetaias" mais antigas no universo do vinagre balsâmico tradicional. A Cristo fica localizada na Sorbara, região perto de Modena, na Emilia Romagna, e é uma terra de uvas e árvores frutíferas, cuja vocação contabiliza ainda séculos de tradição culinária.

Em 2000, a marca conquistou a Denominação de Origem Protegida: hoje em dia, a produção de vinagre, típica de áreas da Modena e Reggio Emilia, é controlada pelos Consórcios, que desde o final dos anos setenta certificam a transparência da produção.

Sobre o vinagre balsâmico já falavam Cícero, Plínio e Virgílio... mesmo nos tempos dos antigos romanos.

Eles cozinhavam mostos de uvas [o resultado do esmagamento da uva com seu suco, cascas e bagas], que "solet acescere": eram deixados nas barricas, talvez por esquecimento, que se convertiam em vinagre. Conta-se que o imperador do Sacro Império Romano, Henrique III, no início do ano 1000, parou no castelo de Matilda de Canossa e foi-lhe servido o vinagre "aveva uditofarsi colà perfettissimo" [que ele ouvira dizer que era perfeito! Nota da tradutora].

O primeiro escrito em que o vinagre balsâmico é citado data de 1508: um documento do Duque Alfonso d'Este, marido de Lucrécia Borgia; a partir do Renascimento, o vinagre balsâmico, da zona do ducado, tornou-se conhecido e popular. Transmitido de geração em geração, oferecido como dote de casamento ou no nascimento de um filho, levou alguns séculos para que o vinagre balsâmico transcendesse os segredos da nobreza e pudesse se apresentar ao mundo.

Quando a madeira envelhece, torna-se uma esponja, absorvendo muita acidez e se corrói, perdendo os cristais de açúcar. Daniele nos mostra um outro barril velho que era colocado sobre os cavalos e utilizado para transportar água ou vinho [provavelmente para dar de beber aos soldados romanos].

Há também barris que datam de 1884. "Temos alguns barris muito, muito velhos". Os chamamos de "tambores da vovó". "Dentro de cada 'acetaia' há muitas dessas histórias e contos intimistas. Portanto, quando nos referimos ao nosso vinagre, é como falar com um membro da família". Os barris contam histórias, levando-nos a outros tempos, tempos mais antigos ...

Do vinhedo ao mosto cozido

O vinagre balsâmico tradicional é como uma fortuna, uma herança, que deve ser cuidada e levada a cabo com grande dedicação. As uvas utilizadas se concentram em três hectares de vinhedo - absolutamente orgânicos - cultivados com uvas tintas e brancas [Trebbiano e Lambrusco, espumantes típicos da região de Modena].

"Coletamos as uvas mais maduras com carro, trator e mesmo à mão, a partir de meados de setembro até meados de outubro. Começamos logo que a manhã nasce para, em seguida, ao meio-dia, voltar a pisar uvas para extrair o 'mosto'", o produto graças ao qual o vinagre balsâmico tradicional é produzido. Um dos passos mais importantes é o cozimento, que deve ser rápido porque, com o calor do verão, ele imediatamente começa a fermentar e perder o precioso açúcar. Por isso é deixado na geladeira, à espera da cocção.

A sala de cocção contém grandes potes, nos quais é cozido o mosto. De manhã cedo, o mosto retirado do frigorífico é aquecido a 95 graus. Em poucas horas, você começa a ver na superfície os sedimentos, chamados de "cappello", que são retirados para dar ao mosto uma aparência mais limpa.

A história da produção de vinagre balsâmico não está ligada a disciplinas específicas. "O balsâmico não foi um produto 'pensado'. Ele era feito porque era comum fazê-lo. Em casa. Era uma tradição".

As bactérias do vinagre e o desejo pelo álcool

Para fazer o vinagre balsâmico tradicional é utilizada a "bateria" - um conjunto de barricas, que consiste em barris de diferentes tamanhos e madeiras, organizados do maior para o menor. A madeira pode ser de sete variedades diferentes e cada uma lega um sabor diferente ao produto. "Aproveitamos ao máximo essas variedades de madeira. Queremos que os vinagres fiquem ainda melhores, por exemplo, com o uso de um tipo de madeira, a da amoreira, ou obter uma mistura de todas". A denominação de 'origem protegida' pressupõe o rastreamento do produto, desde a vinha até  a garrafa, além da característica marca [idêntica à dos barris] e a data de início da produção. Assim, cada barril tem um cartão de identidade com seus próprios detalhes e características.

Em resumo, a feitura do vinagre balsâmico é um processo totalmente artesanal e natural, em que conta o trabalho do homem e da natureza.

Balsâmico sem idade

Hoje, há no mercado os chamados "produtos balsâmicos", que tendem a confundir o consumidor. É o caso das especiarias balsâmicas, muitas vezes feitas com saborosos vinagres. Pode até parecer que tudo o que é "denso e escuro", é antigo e tradicional, mas são produtos que não têm nada de vinagre balsâmico. De modo que agora o vinagre balsâmico tradicional pode ser reconhecido por características muito específicas. Em primeiro lugar, ele deve ter mais de 12 anos de idade; não pode ter a data de produção e deve ser armazenado em uma garrafa especialmente desenhada  pela Giugiaro Design. Foi uma escolha do Consórcio adotar uma única garrafa como garantia do produto. É por isso que se encontrarmos essas garrafas em lojas de Paris, Nova York ou Roma, podemos ter a certeza de que é vinagre balsâmico tradicional de Modena.

Você, leitor, deve estar se perguntando: por que não pode constar a data na embalagem? "Depois de 12 anos, retira-se apenas 10% do conteúdo/volume do barril. Essa quantidade [10%] não é apenas o resultado de doze anos, mas de todos os anos que "entraram" no barril". E é por isso que a garantia de Origem Controlada foi aprovada e o Ministério reconheceu que os fabricantes não podem colocar uma data em seu vinagre. O vinagre pode ter 12 anos [mínimo] ou mais de 25 anos - o que eles chamam de "extra velho" ou "centenário".

Gotas de Vinagre

O vinagre balsâmico tradicional é agridoce, por conta da harmoniosa convivência entra a acidez e os açúcares: quando as partes se juntam, se casam e juram amor eterno, unificam-se em uma mescla de sabor único. E é por isso que produtos extras velhos têm uma harmonia e equilíbrio sem comparação.

Parte importante de uma visita a uma "acetaia" é a degustação. O vinagre é colocado em um frasco de vidro, que é movimentado delicadamente, de modo que seja possível ver a densidade e a clareza, iluminado pela chama de uma vela. Duas ou três gotas de vinagre pousam em uma colher de cerâmica branca [que não deixa gosto] e cheiros, de modo que seja possível saborear os aromas que emanam da acidez. Uma vez colocado na boca, deve-se apreciá-lo calmamente, deslizando a língua antes de engolir, enchendo de aroma as papilas gustativas.

A degustação oferece diferentes tipos de vinagres, até que chegamos ao vinagre envelhecido em madeira de cerejeira, com doze anos de idade. Imediatamente percebemos o sabor aveludado, doce e generoso, perfeito com morangos. "Um sorvete com algumas gotas de vinagre com gosto de cereja é algo sublime". Há ainda o vinagre conservado em zimbro, uma madeira resinosa e famosa por seus frutos, e fica perfeito com carne de caça. Já o vinagre de amoreira é muito apreciado com peixes. Não importa sua escolha: apreciar um desses vinagres é um privilégio.

Até que, finalmente, chegamos ao "extra velho". O balsâmico que tem mais de 25 anos e é chamado de Black Diamond, ganhou um prêmio em 2010 de "melhor balsâmico tradicional". Ele é espetacular. Perdeu a "agressividade" de um produto jovem e possui uma intensidade muito forte; é complexo e penetrante. Se retido na boca durante um tempo, leva a sabores e emoções que mudam continuamente. É para ficar sem palavras, em um silêncio obsequioso.

O legado

Por doze anos, Daniele trabalhou como técnico em prótese dentária. "Somos a primeira geração que vive desse trabalho, que se dedica exclusivamente à produção de vinagre. Nossos pais e avós o faziam em seu tempo livre", explica ele, que se sente um privilegiado e é consciente de que é guardião de um verdadeiro tesouro.

Desde que começaram a crescer como uma empresa, organizam noites temáticas em restaurantes, trabalhando com chefs como Massimo Bottura da Osteria Francescana e têm se expandido com o sucesso conquistado no mercado. "Hoje, exportamos 60% de vinagre para o exterior. O mercado mais rentável é os EUA. É importante frisar que é um produto cujos custos são muito elevados e que exige um grande sacrifício", continua. "Não há feriados, nem pausas. Não há domingos ou feriados. Trabalhamos de forma contínua e estamos sempre aqui porque, se a produção para por um único dia, podemos perder o trabalho de gerações. É um trabalho exigente, que congrega o amor à terra, os produtos, o conhecimento do solo e ainda cuidar do meio ambiente. Apesar das inovações tecnológicas [conhecimento técnico, geladeiras etc.], mantém-se o sabor do velho, do trabalho de um tempo que você tem que fazer bem. E feito em família. É uma forma de ser imortal, de deixar uma marca no futuro, por pelo menos centenas de anos. Também espero que as gerações futuras possam desfrutar desse tesouro e manter sua produção, para a felicidade de todos os paladares. É um desafio, uma tradição; uma história que continua a ser escrita. O passado se torna o futuro graças aos avós e às gerações mais jovens".

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