A mão, o pincel... e a escrita

Artista plástico há 25 anos, Paulo Azevedo busca em suas memórias afetivas a inspiração para criar.

22/04/2013 10:53 / Por: Camila Barbalho/ Fotos: Dudu Maroja
A mão, o pincel... e a escrita

Naquele seu significado mais remoto, que embasou a maneira de se pensar o assunto no Ocidente, arte – ou ars, conforme o latim concebeu – é técnica. Habilidade. Com o passar do tempo, o conceito se transformou e se aproximou dos aspectos mais pessoais e íntimos do homem: passou a ser explicada por meio do contato com o espírito criador que há nos artistas. Por meio das emoções, que frequentemente amparam e justificam as produções artísticas. Até que, em algum momento, a emoção se torna maior que o agente, e dele toma a ação. Nesse ponto, técnica e habilidade – concretas como são – ainda convivem, mas se tornam coadjuvantes diante do sentimento, um protagonista tão abstrato quanto profundo. Confuso? Não para Paulo Azevedo.

Artista plástico há mais de 25 anos, Paulo é um pintor generoso, porque credita a qualidade dos seus trabalhos muito mais ao que traz dentro de si – lembranças, coisas que viu por aí, sensações e outros arcabouços emocionais – do que à própria capacidade e experiência. Em troca, recebe um agrado que muitos apaixonados pela pintura gostariam de ter: a possibilidade de deixar a arte falar por si. Ao contrário do caminho natural, Paulo deixa-se produzir pelo que pinta – ora reconhecendo em si emoções já externadas pelos pincéis, ora blindando a própria racionalidade para que esta intervenha o mínimo possível em seu processo criativo. O resultado é um trabalho abstrato profundo e cheio de personalidade. Mas foi por meio dos artistas figurativos, ainda na infância, que Paulo entrou em contato com o que mais tarde seria sua profissão.

Por volta dos 10 anos de idade, quando era estudante de escola pública, o artista já apreciava as fotos de quadros que via na biblioteca do colégio. “Enquanto meus colegas liam gibis, livros de história, eu via livros de arte. Gostava dos impressionistas, dos concretistas, achava bonito. Mas ainda não havia pensado em ser artista”, rememora. Tempos depois, se deparou com um livro, o “Pinturas Abstratas”, com obras da japonesa naturalizada no Brasil Tomie Ohtake. Foi um divisor de águas na vida do pintor. “Ela passou a pintar aos 50 anos de idade e hoje é uma das maiores pintoras vivas do país. Comecei a entender que era possível fazer o que ela fazia, e aquilo me mudou”. Foi quando ele começou a ensaiar traços abstratos com carvão e lápis de cor, mas relutava em mostrar para os outros. Guardou para si a paixão, ainda em processo de descoberta, para dar vazão a outro talento: a natação, à qual se dedicou por alguns anos.

Não demorou muito para que a arte fizesse um novo chamado. Paulo – que também é arquiteto por formação – relembra que costumava passar por uma galeria de arte onde eram ministradas aulas de pintura. Um dia, viu dentro do ateliê uma pessoa desenhando um rosto. “Fiquei impressionado. Perguntei se aquela pessoa poderia me ensinar a fazer aquilo, a pessoa disse que sim. Eu repetia o que ela me ensinava incansavelmente”. Passou a desenhar rostos para ganhar dinheiro. Com o passar do tempo, percebeu que precisava de mais. “Vi que não era aquilo. Que aquela era a ponta do iceberg. Percebi que eu era movido por outra coisa: pelas cores”.

Seguiu pintando, e lá pelos 17 anos, uma pessoa viu suas pinturas e sugeriu que Paulo expusesse no Centur. Era, mais uma vez, um aceno do futuro. O artista venceu a timidez e deu o primeiro passo rumo ao reconhecimento. Expôs oito trabalhos lá. Vendeu todos em pouquíssimo tempo, para a mesma pessoa. Ele acabara de entrar definitivamente naquele que seria seu universo a partir de então. Hoje, são 43 anos de vida, sendo 25 de exposições individuais e coletivas aqui, no Rio, em São Paulo e em galerias europeias – além de prêmios em salões como Arte Pará, Arte Jovem de Santos-SP, Salões da Aeronáutica e da Marinha, da Listel, entre muitos outros.

Alcançar a carreira que gostaria de ter não estancou a necessidade que Azevedo possui de se expressar artisticamente. Ao contrário: ela foi crescendo e necessitando de cada vez mais espaço para se desenvolver. Por isso, o artista decidiu experimentar pintura em grandes formatos, tratamentos em peças antigas e até mesmo a escultura. “Trabalhar tanto tempo com pincel, tinta e tela não é fácil. Por isso faço da escultura o descanso da minha pintura”, justifica. Mas nada disso ofusca o grande amor que Paulo tem pelo processo de pintar. Defensor romântico dos pincéis, tintas e telas, ele inclusive acabou optando por se afastar um pouco dos grandes salões. “Eu gosto das instalações, performance, vídeos... Tudo isso é muito interessante, muito moderno. Mas os salões de arte contemporânea quase não absorvem mais pinturas. A pintura não pode sair do mercado”, reclama.

Para suprir a falta de espaço, tanto para expor quanto para criar, o pintor deu um passo grande: inaugurou seu próprio Espaço Ateliê. Nele, gasta suas horas entre criações anteriores e as ideias – seja para revisitá-las ou para dar origem a trabalhos novos. Sim, Paulo muitas vezes revisita suas próprias obras, já que, para ele, elas nunca estão prontas e encerradas. “A gente nunca termina uma pintura. É simplesmente a questão de ter maturidade pra saber o momento certo de parar”, explica. Talvez só seja possível deixar a porta entre obra e autor aberta porque os limites concretistas não existem na obra de Azevedo. “Minha pintura abandonou a forma e escolheu a cor. Não tenho mais preocupação com linhas”, revela.

Naturalmente, nem todo mundo compreende essa expressão artística. Há aqueles que negam a credibilidade da arte abstrata por não compreendê-la. Paulo não se ofende. Ao contrário: gosta. “Algumas pessoas falam algo como ‘meu filho de cinco anos consegue fazer isso’. Eu respondo ‘ótimo’. Picasso dizia que aos 50 anos ele pintava como Velazquez. Foi preciso chegar aos 80 pra pintar como uma criança. Acho que é o sonho de qualquer artista conseguir atingir a sensibilidade de uma criança”, opina, cheio de convicção. E complementa: “Se eu conseguir alcançar essa sensibilidade, eu já cheguei ao ápice da minha pintura”. Nem é preciso dizer que o artista é um defensor incansável da abstração. Na opinião dele, a dificuldade de fazer um trabalho bom com essa linguagem agrega a ele mais valor. “A pintura abstrata é o mais difícil. Pintar o figurativo é mais simples porque já existe, você só tem que retratar. A pintura abstrata é uma ‘alma a se descobrir’. Há que se traduzir um sentimento”, argumenta.

E é pela defesa da arte abstrata que Azevedo trava batalhas consigo mesmo. Para permitir que este sentimento seja traduzido da maneira mais genuína possível, o artista frequentemente adota maneiras de driblar o que há de mais racional na sua estética – como a busca por simetria e equilíbrio. Como? Pintando com a mão esquerda, por exemplo. “Eu tento evitar que esses elementos da racionalidade invadam a pintura abstrata. Tento ‘enganar’ o cérebro pintando com a outra mão. É preciso enrolar a razão”, ensina. Nem mesmo a música tem tanto espaço nesta dança entre pintura e pintor. Por isso, ele alterna momentos de música e de silêncio total. “A música interfere no movimento da pintura. Não consigo sofrer interferência da música por muito tempo. Mas, às vezes, gosto de conversar com alguém enquanto eu tô pintando”.

Do mesmo modo que outros sentidos sobressaem com a perda de um deles, a redenção também é compensadora: a desobrigação das formas permite que Paulo enxergue cores que habitualmente não enxergamos. É daí que vem a mistura profícua de tons nos seus trabalhos: ouro, ferro, bronze e o colorido do barroco são alguns dos matizes mais frequentes – além do tema das rendas, que volta ou outra é abordado pelo artista. Para ele, há um vínculo emocional forte com este ponto: “Minha mãe fazia roupas de quadrilha e gostava muito dos tecidos rendados. Foi um dos temas que eu incorporei. Por isso chamo as rendas de ‘lembranças’”.

Mas Azevedo nem sempre foi assim, solar. Houve um tempo que sua obra adotava uma atmosfera mais sombria, com quadros quase sempre monocromáticos e escuros. Inclusive adotou por um tempo uma série marginal, em que retratou pessoas de rua, prostitutas e outras criaturas da noite, numa sequência chamada Noturnos. “Demorei 18 anos para pintar uma tela azul”, conta. Engana-se, porém, quem tenta fazer uma análise psicológica ou vincular esses momentos à vida pessoal do artista. Quando perguntado sobre o que motivou a mudança, ele é sucinto: “a mudança vem em temas. Às vezes em formas, às vezes em cores... Não tem relação com outra coisa”.

A desconexão com influências externas à própria pintura faz com que parar em frente à tela em branco seja sempre um momento que antecede uma incógnita. “Eu sei o que eu tenho que fazer, mas nunca acontece o que eu quero fazer. Por isso, ando pela rua procurando coisas que me interessem”. E é de informações urbanas que as cores de Paulo se alimentam. “Desde uma folha caída até manchas no latão de um navio, restos de construção, os resíduos de papel que sobram do tirar e colocar de cartazes nos muros... Tudo me influencia. Busco muito o tema das ruas”. Mais uma vez, Azevedo tira de si o peso de assinar o resultado dessas influências: “é como se eu usasse a pátina do tempo pra realizar a minha pintura. É a pátina do tempo que valoriza a pintura. O tempo capta o melhor pra gente”.

Sobre o que o motiva a fazer o que faz, Paulo não precisa nem mesmo refletir para saber. É taxativo o posicionamento: “o artista tem a obrigação de mudar o outro. Se alguém disser que o meu trabalho é ruim, acho isso bom. A arte precisa desse debate, dessa contradição”. E são sua inquietude e fé nesse propósito que baseiam o que está por vir. O futuro é muito nítido. Ele pintará até onde puder. “Me vejo pintando sempre. Consigo viver da arte, mas isso não é suficiente pra quem tem arte como profissão. Quero fazer exposições, estar em uma grande galeria... Não sei. A pintura vai me levar”. E vai além: “quero fazer parte da história de vida do meu filho, do meu neto, da herança cultural da cidade. Quero que meu neto faça um trabalho de colégio sobre mim”, exemplifica.

Ao fim da entrevista, depois de revelar toda a profundidade do seu trabalho, Paulo Azevedo ainda acredita que haveria mais para dizer. “Queria saber escrever para dizer tudo o que eu sinto”, ele pensa alto. Mal sabe Paulo que escreve – ou é escrito – sobre tudo. A diferença é que só lê quem conquistou cidadania em mundo tão peculiar.

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