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Entre Águas e Saberes

Quando pensamos em tecnologia, é quase impossível não imaginar aparelhos eletrônicos, celulares, LEDs e uma atmosfera quase robótica. E, de fato, falar dela no mundo contemporâneo sem citar tudo isso pode ser difícil.


Porém, ao olhar o conceito da palavra, “tecnologia” pode ser definida como o conhecimento técnico e científico e suas aplicações a um campo particular. De certa maneira, podemos dizer que trata-se de tudo aquilo inventado para facilitar ou possibilitar atividades humanas; portanto, vai muito além das telas. A tecnologia está presente em um simples garfo até áreas de conhecimento altamente complexas. 




Não existe tecnologia sem conhecimento, e, na Amazônia, as áreas do saber são entrelaçadas pela oralidade, observação e integração que os povos originários têm com o mundo, nem sempre obedecendo aos moldes acadêmicos formais. São águas turvas, encontros de rios inteiros que deságuam em um ecossistema de tecnologias para não apenas lidar, mas entender-se no mundo como parte da natureza.


Nesta edição, fizemos um mergulho em um universo onde estas ferramentas ancestrais podem ser muito bem observadas: a arquitetura ribeirinha. São materiais, cores, detalhes e processos de produção desenvolvidos há tempos incontáveis, resultando em construções e histórias únicas.


Nascente de ideias

“Por que vocês fazem uma arquitetura que poderia estar em qualquer lugar do mundo?” Há cerca de cinco anos, os paraenses Luís Guedes e Pablo do Vale ouviram a pergunta que tiraria algumas noites de sono vindas de um amigo. A inquietação, somada ao desejo de retomar suas raízes, geraram a Guá Arquitetura, escritório voltado à pesquisa e desenvolvimento das construções ribeirinhas na Amazônia.


 Ainda sobre o seu surgimento, Luís conta: “a arquitetura virou um suporte para contar a nossa própria história”. E de lá para cá, a dupla marcou presença em eventos de vanguarda das tendências na área, assumindo uma posição historicamente rara a profissionais nortistas: a linha de frente. “O Mestre Valdiley, que ia virar mototáxi e abandonar a carpintaria, foi para ONU de Nova York palestrar junto com a gente sobre carpintaria amazônica”, completa.


Mas até chegar à Big Apple, muitas águas rolaram. O ponto de partida dos arquitetos foi a Ilha do Combu, na região metropolitana da capital paraense. Ao atravessar os furos dos rios inúmeras vezes, Luís e Pablo se encantaram com as estruturas da casas. Convivendo com a população, aos poucos foram entendendo como funciona a tradição dos mestres carpinteiros.


“Na nossa inocência, a gente achou que ia atravessar o rio e levar conhecimento, mas durante esses 5 anos que a gente tem pesquisado isso, nunca consegui ensinar muita coisa [...] Lá, eu aprendi com eles. E aí a gente foi entendendo que cada casa tem um caqueado diferente, porque é identitário de um mestre”, explica Pablo.


Arquicaqueado

Engana-se quem pensa que a arquitetura ribeirinha possui apenas uma faceta. Os carpinteiros são chamados de mestres através da designação do seu povo, assim como ocorre em outras expressões culturais, como o carimbó.


“A comunidade, de forma conjunta, escolhe seus próprios mestres. É o reconhecimento de qualidade, quase um título de honraria [...] São poucos mestres, geralmente um por microrregião. Eles são os responsáveis por manter essa herança viva”, diz Luís. Até a chegada da Guá na Ilha, a tradição da carpintaria ribeirinha corria risco; tanto porque as novas gerações não demonstraram muito interesse na profissão, quanto porque outras atividades frequentemente eram mais bem vistas.


Para além dos mestres entre a arquitetura e o carimbó, os paralelos musicais não terminam por aí. É comum se dizer que as casas têm caqueados; ou seja, os estilos que funcionam como a assinatura de um mestre. Enquanto nas festas paraenses o termo expressa o modo de dançar de alguém, na carpintaria o caqueado é a marca definitiva das mentes por trás das construções.


Segundo Pablo, “toda casa ribeirinha é uma expressão cultural do carpinteiro e da pessoa que mora, mas com a vontade de ser única, seja pela cor ou pelo tipo de caqueado. Você vê uma linguagem uniforme e um traço do artista [...] Mas assim como o Niemeyer não fez duas Pampulhas ou dois Ibirapueras, o carpinteiro também se nega a fazer uma casa igual a outra.”


Por fim, a cor é um elemento essencial, dentro e fora das casas. Artistas como o também paraense Luiz Braga dedicam-se há anos aos registros dos interiores exuberantes das casas amazônicas. Na Guá, os arquitetos ouviram relatos que dão pistas de onde vem esta fonte de inspiração: “Uma das frases que aparecem recorrentemente [na pesquisa] é que as cores das casas são colocadas para se destacar no verde da floresta”, conta Luís.


Chiaroscuro amazônico 

 Uma das construções no Combu chamou em especial a atenção da dupla. Seu caqueado dava a impressão de que a madeira da fachada ficava mais clara ou mais escura, a depender da posição do observador. Encantados, os arquitetos conseguiram conversar com Mestre Josa, autor da façanha e griô da região. Luís conta um pouco de como foi o encontro:

“Ele ia contando coisas que para ele eram super simples, mas que pra gente na arquitetura é super complexo, como por exemplo pensar na modulação do caqueado para que ele escondesse as vigas e desse na altura da ergonomia do banco, e assim por diante [...] Uma minúcia de arquiteto de altíssimo nível.” E continua: “eu tinha a certeza que ia atravessar o rio e esquecer metade do que eu estava ouvindo, então, naquela mesma hora, intuitivamente puxei o telefone e comecei a gravar.”


A conversa com o Mestre Josa se transformou em muitas, e as mais de dezoito horas de entrevistas registradas viraram o documentário “Carpinteiros da Amazônia”, uma produção reconhecida internacionalmente em eventos como o Festival Berlin Lift-Off e o disputado Architecture Hunter Awards. Graças ao curta, hoje temos acesso a depoimentos de técnicas que estavam em risco e atualmente ganham força com as parcerias que o instituto da Guá Arquitetura promove na região, conectando os mestres das ilhas a nomes conhecidos no design através das collabs, movimentando a cadeia econômica e criativa das comunidades.


Sustentabilidade

 Para além da beleza, a construção das casas acontece em um processo que faz sentido para a realidade da região. Tradicionalmente, uma casa ribeirinha é 100% biodegradável: as madeiras podem ser obtidas no próprio quintal; a palha dos telhados, idem. Outro ponto chama a atenção: o ciclo de vida da edificação.


Sobre isso, Pablo diz: “o ribeirinho lida com a efemeridade da casa. Quando ele faz uma casa de madeira, sabe que essa casa vai durar 10, 15 anos no máximo. E que ele, durante o ciclo da vida, vai ter que refazer essa casa do zero. E tá tudo bem.” 


Faz todo o sentido uma casa feita de natureza também ter ciência da sua finitude, pois ela faz parte do ciclo da vida. Como diria outro grande mestre, “tem que morrer pra germinar”. E aqui, o fim de uma casa é onde brotam novas possibilidades, lares e caqueados pelas mãos e mentes daqueles que colocam a história de pé.


Saiba mais em

carpinteirosdaamazonia.com.br / @guaarquitetura