Paixão que vem do sangue

Em entrevista emocionante, Daniela Martins fala da relação familiar com o restaurante Lá em Casa e do dever de continuar o trabalho do pai, o chef Paulo Martins

27/06/2012 14:43 / Por: Camila Barbalho / Foto: Dudu Maroja
Paixão que vem do sangue

É difícil encontrar Daniela Martins sem um sorriso no rosto. Assustadoramente ativa e disposta, a chef do Lá em Casa herdou do pai - o saudoso Paulo Martins - o restaurante, o festival Ver-o-Peso da Cozinha Paraense e a missão de levar a culinária local a todos os pontos do país. Em meio às muitas memórias da infância, que se confundem com a própria história do estabelecimento, Daniela volta a ser uma menina. Embora só fale olhando no olho, dá pra perceber o momento em que ela se distancia, imersa em lembranças dos tempos idos. Apaixonada pelo pai e pelo restaurante onde cresceu, ela se emociona em diversos momentos ao falar dessa relação. Hoje, muito mais consciente do papel que Paulo Martins exerceu (e ainda exerce) na divulgação da cultura gastronômica do Pará,  Daniela toma para si - com muita naturalidade e com seu sorriso habitual - a responsabilidade de manter vivo o projeto sustentado por ele. Em uma conversa comovente, a chef falou da relação familiar por trás de um dos mais tradicionais restaurantes de Belém - ontem, hoje e amanhã. Confira:

 
Como é a relação das suas irmãs com o restaurante?

A Paula não quer nem ouvir falar em restaurante. Se ela puder, não passa nem na porta. Eu cresci dizendo que ia assumir o restaurante e acabei assumindo. São essas coisas que a gente diz quando criança e nem leva muito a sério. E a Joana é quem administra, o lado carrasco da família (risos), mas sem ela a coisa não anda. A cozinha é uma coisa extremamente emocional. Tem que ter alguém pra te segurar. Assim a gente se equilibra, uma não funciona sem a outra. É assim que a gente sobrevive nessa guerra diária, que é continuar o trabalho de 40 anos do papai e da vovó, que é o mais emocionante.
 
Pensando na sua infância, quais são as suas primeiras recordações da cozinha?
 
Nossa, são tantas... Principalmente do primeiro Lá em Casa. A gente cresceu na casa da vovó, onde era o restaurante. Então a gente vivia naquela danação de criança, de perturbar as doceiras. A gente queria enrolar doce, mexer doce, e as doceiras diziam que cozinha não era lugar de criança. E não era mesmo. Era muito quente, a cozinha era muito pequena, mas em nenhum momento a gente deixou de estar por ali. Uma vez, a doceira tirou férias e deixou a sobrinha dela em casa. Ela fez o café do escritório, e eu peguei a garrafa térmica pra levar pra lá. Derrubei o café no meu braço, fiquei toda queimada. A gente também tinha mania de meter o dedo no brigadeiro, de molecagem mesmo, antes de as doceiras enrolarem. Elas sempre brigavam com a gente, diziam que o brigadeiro tava quente, mas nunca tava. Até que um dia, a Joana chegou do colégio e colocou todos os dedos na bandeja onde o doce estava esfriando, e ele tinha sido tirado do fogo naquele instante. Ela ficou com todos os dedos queimados (risos). E o engraçado é que mesmo assim nós não ficamos com trauma de cozinha. A gente nunca teve medo de estar lá dentro, brincando, mexendo. A nossa primeira doceira, a Naná, criou todos nós. Trabalhou com a gente por 50 anos. E até hoje, quando eu preciso de alguma coisa dos arquivos mortos do restaurante, é ela que eu procuro.
 
Por que você acha que foi a única que realmente assumiu a cozinha?
 
Eu fui a única maluca o suficiente (risos). A gente nunca teve aquela história de precisar cozinhar pra ter comida em casa. O restaurante era do lado de onde a gente morava, e era muito simples pegar comida lá e levar pra casa. Eu sempre gostei da bagunça do restaurante, sempre gostei de estar envolvida. Eu me lembro de um evento que o papai fez para 3 mil pessoas. Eu era pequena. Só fiz entrar na Kombi e avisar à mamãe que ia pra lá. Fui de manhã e só voltei com o papai quando acabou a festa. O papai só me deixava abastecer os doces, porque era o que dava pra fazer com o meu tamanho. Ou seja, eu sempre gostei de estar no meio. Das três filhas, eu sempre fui a mais interessada nesse sentido. E talvez por eu ser a filha mais ligada ao papai, tinha esse lado de querer estar sempre com ele. No fim das contas, eu acho que vem de dentro.
 
Como era a rotina por causa do restaurante?

A gente cresceu sem ter pai e mãe no sábado, domingo, dia santo, feriado. Nas férias, a gente conseguia viajar com a mamãe, mas nunca com o papai. Papai passava às vezes um fim de semana com a gente, e isso quando dava. A Paula sofreu muito com isso, eu também senti. Aí decidi não ter a mesma rotina. Tenho um acordo com as minhas filhas, pra que elas não sintam tanto a minha ausência. Mas é uma rotina muito desgastante.
 
Hoje você entende melhor a ausência do seu pai?
 
Eu sempre entendi. Nunca cobrei a ausência dele. Na verdade, a gente queria estar com ele, e não que ele estivesse com a gente. Trabalho e família foram muito misturados na nossa criação. A gente sempre teve a convivência muito em conjunto com o restaurante, porque trabalhava toda a família. Essa relação não existe com as minhas filhas, elas não vêm pra cá. A Ana Maria sentiu mais a minha ausência que a Carolina, que é mais nova. Isso é porque quando ela era pequenina, eu abdiquei muito de ficar com ela pra ajudar o papai no restaurante. É inevitável quando você é dono e quer estar presente no seu negócio.
 
 
Para além da cozinha, qual foi o maior legado que seu pai deixou?

(Daniela começa a chorar) Ele era um excelente pai. Não dá pra defini-lo. Como explicar ele ser um excelente pai se ele era tão ausente? Mas ele sempre fez tudo pela gente. Às vezes, a gente se irritava tanto com ele a ponto de querer matar (ri entre lágrimas). Mas se a gente parar pra pensar, até o correr atrás do legado de levar a gastronomia era garantir um futuro pra gente. Não era só o que ele acreditava. Por isso a missão de não deixar acabar. Papai era um ser humano muito bom. Estressado, mas muito bom.
 
Era muita coisa na costa dele, né?

Muito, muito. Ele era um homem pra sustentar sete mulheres, entre mãe, tia, irmã, mulher e filhas. E todo mundo dependia dele. A vovó ajudou muito, mas a responsabilidade sempre caiu nele. Ele administrava a empresa. E quando o restaurante começou, ele cozinhava e administrava.
 
Você acha que ele esperava que você assumisse?

Eu tenho certeza que ele nunca imaginou isso. Ele não preparou a gente pra cuidar da cozinha. Primeiro, porque ele achava que ele era imortal, e nunca se preocupou em fazer um substituto. E segundo, porque eu acho que, no fundo, ele nunca acreditou que alguma de nós daria conta do recado. Porque não é fácil. Ele sabia que o Lá em Casa não acabaria por falta de administrador, mas ele não acreditava que alguém iria assumir a briga diária com as panelas.
 
Você viu o nascimento do festival Ver-o-Peso da Cozinha Paraense. Como foi o início?

Engraçado que na primeira edição eu nem estava em Belém. Comecei a participar da segunda em diante, vi o festival ainda pequenininho. Conheço o projeto desde que era um embrião. Sempre muito estressante, mas sempre muito gostoso de fazer. Sempre estivemos perto dos chefs convidados, e cada sabor que eles descobriam era uma reação impressionante. As caras deles. E todo ano sempre tem um muito surpreso. O gostoso é justamente isso: apesar de as coisas chegarem lá fora e eles saberem como utilizar, quando chegam aqui eles ainda conseguem descobrir ainda mais coisas novas. As frutas, por exemplo, não chegam lá fora. Só chega o básico, e numa qualidade inferior à que a gente está acostumada. O piquiá, o taperebá, o uxi... Essas coisas eles não dominam. A gente tem uma diversidade de produtos, de pratos típicos mesmo, que impressiona. O paraense tem tanto prazer de comer a sua própria comida que leva cada um dos seus ingredientes para a cozinha. Isso vai se expandindo. Hoje, todo restaurante contemporâneo do Rio ou de São Paulo tem pelo menos um prato com tucupi ou alguma sobremesa de cupuaçu. É gostoso ver que o trabalho de vida inteira funcionou.
 
Nesse sentido, o chef Paulo Martins foi um visionário, né?

Foi. O papai acreditou muito. Ele foi um guerreiro quando ninguém dava valor para a gastronomia. Ele teve o apoio de grandes chefs de fora, claro, porque não adiantava fazer o festival se as pessoas não acreditassem no que ele tinha. E isso ajudou muito ele a dar continuidade, mesmo tirando dinheiro do bolso o tempo todo. Ele pagava pra divulgar o Pará.
 
Você acha que alguma das suas filhas vai tocar o restaurante daqui a alguns anos?

Eu tenho duas filhas. A mais nova, Carolina, vem pra cozinha vestida de chef, com avental, chapéu e tudo. Ela só não vai assumir o restaurante se ela mudar muito. Mas ela tem tudo pra cedo estar na cozinha. E sinceramente, eu já começo a pensar onde colocá-la pra estudar gastronomia. Dia desses, ela falou que fez um jantar igual ao meu primeiro: um desastre (risos). Mas ela fez sozinha. Eu tava trabalhando e ela resolveu cozinhar sem orientação nenhuma, com 10 anos. Na idade dela, eu não me atreveria. Por isso que eu digo que tá no sangue, corre na veia.

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