Palavra em movimento

Arnaldo Antunes é um artista mutante, diverso. A palavra é o ponto de partida na escrita, na fala, no visual, na canção. Cria diálogos. Entre as letras, os sentidos e o mundo.

13/02/2014 18:45 / Por: Tyara De La-Rocque/ Fotos: Daryan Dornelles
Palavra em movimento

Nas mãos de Arnaldo Antunes a palavra experimenta diferentes formas de vida. Cantada, escrita ou falada, é sempre poética. Ora critica, ora reflete. Ora emociona, ora diverte. Ora tudo isso junto. Arnaldo é assim: confunde as palavras com coisas, à maneira dos poetas concretos. Com ele, o movimento da palavra une-se à dinâmica da vida. Músico, compositor, poeta, escritor, artista visual, dialoga com o Tropicalismo, com a tradição clássica - com sua métrica e rimas - com a canção popular, fotografia, com intervenções na chamada poesia eletrônica ou digital, da qual é um dos precursores no Brasil, ao lado de Augusto de Campos, e na performance, em que o próprio corpo participa do fazer poético.

Aceita também a influência da linguagem das histórias em quadrinhos, das placas de sinalização, dos videoclipes e outros ícones da cultura de massa dos centros urbanos. Estes elementos são visíveis nos poemas publicados em livros e também nas canções. Arnaldo não vive de arte. Ele vive a arte. Na conversa, no silêncio, numa lembrança. “Compor é estar vivendo, é como ler um livro ou dar um beijo em alguém”, ele diz. Uma estrela, um amor, um ente que parte, tudo pode ser inspiração artística.

Se existe a ideia de que as coisas renovadoras não serão entendidas pelo grande público, que deseja uma repetição do que já conhece, Arnaldo Antunes segue o caminho inverso a essa lógica. Acredita que o dever de todo artista que se preze é inserir novidades em seu trabalho, tentar alterar a consciência e a sensibilidade das pessoas.

A música e a poesia chegaram juntas na vida de Arnaldo. Melhor dizendo, a palavra o levou à música. Começou a escrever ainda na adolescência, período em que também fazia aula de violão pelo interesse de compor. No começo da carreira, fez parte da Banda Performática, que juntava música com outras linguagens artísticas. Estudou Letras na Universidade de São Paulo por gostar de literatura, mas não chegou a concluir, pois na mesma época, em 1982, integrou o grupo de rock Titãs e não conseguiu conciliar as aulas com os ensaios, gravações e shows da banda. Com o Titãs gravou sete discos, entre eles o clássico Cabeça Dinossauro, e permaneceu durante dez anos na banda, saindo em 1992 para seguir carreira solo. Foi quando abriu um leque de novas possibilidades para criar, explorar outros estilos musicais, agregar parcerias aos trabalhos e desenvolver projetos paralelos, como os Tribalistas, com Marisa Monte e Carlinhos Brown e o Pequeno Cidadão, com Edgard Scandurra, Antonio Pinto e Taciana Barros.

Arnaldo acredita que os encontros na vida surgem pelas afinidades. Natural, então, o seu encontro com arte, tamanha a empatia. E também que tenha tantas outras e variadas parcerias bem-sucedidas: Erasmo Carlos, Liminha, Marcelo Jeneci, Paulinho da Viola, Alice Ruiz, Margareth Menezes, Jorge Benjor, entre outros. Sem rótulos e preconceitos, Arnaldo segue o fluxo da caminhada, transita por vários universos, curioso, procurando saber sobre a realidade contemporânea, as movimentações no campo da música, da era digital, e apesar de ter certo receio com a velocidade do mundo hoje, procura estar informado, se atualizar e se relacionar da melhor forma com as mudanças constantes que a vida pede.

O recente trabalho do artista, o Disco, lançado em outubro de 2013, traz uma vasta lista de parceiros, entre músicos conhecidos e novos artistas: João Donato, Caetano Veloso, Céu, Felipe Cordeiro, Luê, sua mulher Márcia Xavier, Dadi Carvalho, Nando Reis e outros nomes. O Disco apresenta vários universos, é um trabalho plural com reflexões sobre questões sociais, da existência e referências à finitude.
Em comum entre todas as artes que produz são os rascunhos. É em meio aos rabiscos que adiciona, subtrai e lapida as produções artísticas, seja no papel ou no computador. Num processo de “refeitura”, num fazer e desfazer, até sentir que chegou aonde queria. E assim traz a poesia para os ouvidos e olhos, para sentir, para viver.

A palavra é o ponto-chave dos seus trabalhos artísticos. Poesia concreta, composições musicais, a palavra cantada, falada, escrita, visual. Quando você começou a ter uma relação mais aprofundada com as letras?
Na adolescência. Na mesma época comecei a ter aulas de violão pelo desejo de compor, sem prever aonde isso me levaria. Entrei na faculdade de Letras, porque gostava de Literatura. Nasci em 1960 e cresci num contexto e ambiente em que tinha um movimento forte que se aproximava da poesia. Cresci na época do Tropicalismo, de Waly Salomão, Leminski, então já nasci influenciado por esse universo. A música e as letras foram um interesse natural.

Como é o seu processo de criação?
Não tenho método algum. Ao mesmo tempo em que a experiência nos dá mecanismos para compor com mais propriedade e vamos aprendendo tecnicamente, não é nada certo; nunca sei o que vai sair. Sempre tem um pouco de aventura. Às vezes sai a letra, depois a melodia. Ou o contrário. Às vezes estou no violão e também nasce algo. O que tem em comum entre tudo o que faço são os rascunhos. Não faço só por adições, mas por subtração. Vou achando entre os rascunhos, faço no computador também e vou lapidando até sentir que se adequou.

E as inspirações?
Muitos fatos me inspiram. Qualquer coisa pode ser inspiradora. As relações afetivas, uma lembrança, uma estrela, um ente que parte, uma canção. A inspiração vem de muitos lados e tem uma imprevisibilidade. Não vejo a arte como comentário da vida e sim como parte da vida, como manutenção.

Antes de o seu novo disco (Disco) ser lançado, quatro faixas foram divulgadas na internet. Essa proposta é parte de uma reflexão sua sobre como a música é ouvida hoje, em tempos de internet. Como foi fazer esse trabalho pensando que não há mais a necessidade de se lançar discos na indústria musical como antes?
Sou muito apegado à ideia do disco como um objeto em que as faixas se relacionam. Mas hoje temos alternativas para escutar música, que subvertem a necessidade de ter um disco físico. As pessoas se relacionam com a música de uma nova maneira; aumentaram as opções, mas isso não significa que seja o fim do disco, pois ainda convivemos com ele. Tem horas que queremos fazer o processo ritualístico de ouvir o álbum completo e poder observar faixa-a-faixa. Muitos gostam disso. Eu também valorizo. A forma com que lancei o Disco foi inusitada. Adequei-me a um novo padrão, que é o de as pessoas poderem consumir e ouvir música na internet de forma avulsa. Mas também resolvi chamar o disco de Disco por conta do paradoxo de uma época em que estamos lançando música virtualmente, desapegada do objeto material, ao mesmo tempo reafirmando o desejo de que esse objeto tenha uma cara.

Como foi o feedback das músicas que você disponibilizou na internet?
Foi bem legal! Adorei esse movimento, deu um gás e alimentou um pouco a excitação. Além disso, me fez trabalhar de maneira diferente, pois em vez de fazer o processo mais comum, que é o de gravar as bases e depois mixar, fui trabalhando música por música e disponibilizando na internet. Gostei dessa troca de ir mostrando aos poucos, ver a expectativas, comentários e ter um retorno do público enquanto gravava o disco, com elogios ou críticas.


Isso também tem a ver com uma característica sua de acompanhar as movimentações que ocorrem no mundo da música, na era digital, de estar se atualizando. Alguns artistas ainda não se acostumaram com a ideia de músicas para baixar na internet e são resistentes a algumas mudanças. Como você olha pra quantidade e velocidade de informações disponíveis hoje e como o seu trabalho se insere nisso?
De fato, existem alguns artistas que ainda são apegados a modelos. Hoje o meio de produção está mais na mão dos criadores, a veiculação também. Não dependemos tanto de TV e algumas mídias. Temos acesso a todo tipo de informação, isso é uma liberdade incrível. É um instrumento que cada pessoa vai se relacionar de uma forma pessoal, acho que depende muito de cada um. Tenho um pouco de medo da velocidade, de as pessoas ficarem muito na superfície das informações e não se aprofundarem. Não pararem para ler algo mais extenso, refletir, contemplar, para ouvir um disco. Tento acompanhar as mudanças por uma curiosidade muito grande, por isso acabo me ligando nos trabalhos musicais da nova geração da música. Toco na minha banda com músicos mais novos, acompanho e gosto do trabalho deles. Crio diálogos. O Grêmio Recreativo, da MTV, foi um programa no qual eu tentava fazer justamente esse diálogo. Acredito que quando se tem afinidade os encontros se dão muito naturalmente.

Entre as parcerias do Disco estão artistas da nova geração da música contemporânea do Pará, o Felipe Cordeiro e a Luê, além do Manoel Cordeiro, que é um veterano, na música “Ela é Tarja Preta”. Como foi trazer essa parceria e um pouco da sonoridade paraense para seu novo trabalho?
Primeiro conheci a Luê e adorei o trabalho dela. Já gostava do Felipe e adoro guitarrada. Acho bacana que atualmente a cena musical do Pará esteja se destacando e as pessoas conhecendo um pouco mais do que se produz lá. O Betão Aguiar (músico e um dos produtores do “Disco”) foi quem fez a ponte entre nós todos. Um dia marcamos um encontro na minha casa e espontaneamente fizemos duas músicas. Foi incrível! Tivemos afinidade. Fiquei feliz com o resultado. Quando toco “Ela é Tarja Preta” nos shows a plateia sempre curte bastante.

Inclusive, “Ela é Tarja Preta”, quando foi disponibilizada na internet, dividiu o público, causou um estranhamento em alguns por você ainda ser visto como um cara do rock.  O que achou disso?
Acho uma bobagem. Antes de eu gravar “Ela é Tarja Preta”, por exemplo, já tinha a canção “Invejoso”, do álbum Iê Iê Iê, que é quase uma lambada. Descobri a afinidade dessas duas músicas, tanto que nos shows, tenho tocado as duas na sequência. Quando ouço: ‘Arnaldo agora está fazendo tecnobrega’ de uma maneira como se isso fosse algo menor - só me leva a pensar que é um preconceito, fruto de desconhecimento. Meu trabalho tem tudo a ver com tecnobrega.

Algumas músicas do Disco lembram a sonoridade da época dos Titãs...
Sim! “Vá trabalhar” eu cantava com eles na época do Titãs. Não cheguei a gravar, só tocava nos shows mesmo. Depois ficou meio esquecida. Achei que tinha chegado a hora de registrar essa canção e ela se ajeitou bem no disco. É uma música que tem uma pegada rock’n’roll e tem uma presença direta dos Titãs. Acho normal. Além disso, a canção “Sentido” é uma parceria com o Nando Reis e que o Charles Gavin gravou bateria e pandeirola.

O que você tem vontade de realizar no seu trabalho que ainda não aconteceu?
Fotografo placas de ruas e quero fazer um projeto para expor essas fotos em algum momento. Pretendo fazer uma narrativa entre as placas, num livro. Não exatamente contar uma história, mas fazer analogias. Na verdade, antes de se tornar um livro, vou realizar uma exposição com painéis, com as fotos dialogando.

Alguma previsão de estar em Belém com a turnê do Disco?
Por enquanto não, mas espero poder voltar em breve a Belém. É uma cidade intensa, marcante pelo cheiro, pelas mangueiras e a chuva da tarde.

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