Cidade do improvável

Descubra as histórias que permeiam o imaginário popular belenense - e se elas são reais!

18/12/2013 16:01 / Por: Anderson Araújo/ Ilustrações: Rodrigo Cantalício
Cidade do improvável

Uma cidade em que os zeppelins não voam, passeiam entre os carros e a multinacional Coca-Cola, toda poderosa das bebidas gaseificadas, foi vencida pela concorrência local. No subterrâneo, segredos tenebrosos e fugas espetaculares entre túneis secretos ligando igrejas históricas. Nesta urbe, os ricos eram tão ricos que mandavam lavar suas roupas com o melhor e mais cheiroso sabão do mundo, nas melhores lavanderias europeias. Ainda que encravada no meio da floresta, a conexão com a economia global era imediata desde sempre, tanto que quando Nova Iorque viveu o terror da quebra da bolsa de valores, em 1929, as empresas da cidadela amazônica sentiram o abalo sísmico do sistema financeiro e quebraram junto.

O quadro se encaixa com perfeição como pano de fundo de uma novela de Dias Gomes ou na literatura de realismo fantástico de mestres como Gabriel García Márquez. Mas, longe dos livros e das fábulas, são histórias que permeiam o imaginário da principal cidade da Amazônia: Belém, que por essas e outras é tida como a cidade das coisas impossíveis, onde o improvável se materializa, o imponderável se apresenta em carne e osso e a realidade se dilui em ficção, misturando o que é o que não é nas conversas de esquina, nos balcões dos botecos, no boato aumentado, de boca em boca, ao longo dos anos.

A RLM foi buscar o “fundo de verdade” – se é que existe – em histórias pitorescas alimentadas pela imaginação belenense. Não as lendas e assombrações, que são muitas e estão flutuando no “fabulário” geral da cidade, em livros e ainda nas conversas sussurrantes nas portas de casa, apesar das luzes do século 21 e seus problemas intrínsecos e nada sobrenaturais. O interesse é nas curiosidades históricas repetidas como boatos, mentiras, verdades alteradas e até mesmo com precisão, embora pouca gente saiba do que de fato está falando.

Belém e os zeppelins

Para quem duvida que os zeppelins circularam nas ruas de Belém, um clique no Google mostra os ônibus criados no formato das máquinas voadoras, cuja invenção está nos créditos do Conde Ferdinand Von Zeppelin, dos Países Baixos, com patente de 1895. Porém, há registros que o aparelho aeronáutico foi, na verdade, invenção de um paraense: Júlio Cezar Ribeiro de Souza, nascido no Acará em 13 de junho de 1843. É dele o mérito de colocar no ar o primeiro dirigível fusiforme dissimétrico do mundo, o “Le Victoria”, com 10 metros de comprimento, conforme relato da imprensa francesa. O protótipo voou em Belém no ano de 1881, em demonstrações públicas.

A imagem do dirigível em Belém foi feita por fotógrafos da revista norte-americana Life, em 1957, e bate com a história contada por Marcelo Magalhães, sobrinho-neto do empresário da família Abraão que teve a ideia de adaptar um novo formato nos chassis comprados para montar os primeiros ônibus de Belém. Marcelo conta que o irmão de sua avó era o dono da Viação Triunfo, a primeira empresa a fazer os ônibus-zeppelins. A carroceria alongada com design aerodinâmico para os céus era feita de madeira e folhas de flandres, pintada com tinta prateada. No interior, o acabamento também era caprichado com bancos de couro e, em vez de cobradores, “aeromoças”.

Marcelo diz que a empresa trabalhou inicialmente com sete veículos entre as décadas de 1950 e 1970, fazendo um trajeto especial com paradas estratégias nos “clipers”, pontos de ônibus cobertos, “bisavôs” dos hoje tão sonhados terminais de integração. Quem andou de zeppelin diz que fazia um calor tremendo por causa da estrutura pesada de madeira e metal, mas era charmoso e muita gente ficava esperando para dar uma voltinha, provavelmente se imaginando entre nuvens.

Marcelo relata que não foram poucos os pequenos acidentes com os zeppelins devido à forma e o tamanho, difíceis para os chauffeurs manobrarem pelas ruas de Belém. A ideia do tio-avô Abraão ocorreu a partir das memórias de zeppelins voadores vistos por ele. Quem sabe não era o protótipo do Julio Cezar sobrevoando o bairro de Nazaré, no final do século XIX. O fato é que outras empresas entraram no ramo dos zeppelins com rodas na capital paraense e o último dos veículos do espólio da Viação Triunfo terminou como combustível para uma fogueira de São João, como conta o descendente do empresário que teimou em colocar os veículos alados em terra para deleite dos cidadãos de Belém.

Duas igrejas

Muita gente diz que há um longo túnel ligando a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré à Catedral Metropolitana da Sé. O coordenador do Fórum Landi e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Pará (UFPA), Flávio Nassar, esclarece que tudo não passa de boato, invenção ou distorção da realidade, jogando um balde de água fria nas teorias conspiratórias sobre os dois símbolos da religiosidade e da marca da Igreja Católica no desenvolvimento.

Nassar explica que os tais túneis podem ser uma confusão com a rede de esgoto construída pelos ingleses ao final do século XIX, no embalo do ciclo econômico da Borracha. Eram galerias grandes com espaço para quase caber um adulto em pé. O arquiteto diz ainda que parte desse sistema ainda funciona nas áreas das avenidas Nazaré e Braz de Aguiar. Já na parte mais antiga da cidade é improvável que ainda existam e muito menos se conectem entre si.

O diretor do Instituto Histórico e Geográfico do Estado do Pará, Leôncio Siqueira, acrescenta outro dado que derruba a teoria dos túneis: a Sé é do século XVII e a Basílica Santuário construída no final do século XIX e começo do século XX. Portanto, há cerca de 200 anos de desenvolvimento urbano que dificultariam a empreitada, não a tornando impossível, mas improvável.

Ele pontua ainda que é possível que os colonizadores tenham disseminado a ideia dos túneis para impor respeito frente a possíveis invasores, baseado em informações das províncias fundadas anteriormente, como o Rio de Janeiro e Santa Catarina. Nas duas, de fato, há construções históricas do período colonial ligadas por túneis ou com acessos às margens de rio. No Pará, Leôncio afirma que a cidade de Vigia de Nazaré, no Nordeste do Estado, tem uma passagem que vai da torre principal até o rio Guajará-miri, uma passagem secreta para possíveis fugas ou ataques-surpresa.

O historiador não descarta que possa haver túneis interligando outras igrejas ou acessos dos templos a rios. Um exemplo é a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, situada na Cidade Velha e próxima das margens do rio Guamá. No entanto, é preciso um trabalho arqueológico e de investigação histórica que exige afinco e disposição. Fica o mistério no ar, portanto.

Linha direta Nova Iorque-Belém

Verdade seja dita: Belém já andava mal das pernas economicamente muito antes do fatídico ano de 1929, que determinou uma sucessão de falências pelo mundo a partir do desmantelamento da bolsa de valores nova-iorquina. Quando a notícia começou a se espalhar, o governador do Pará na época, Eurico de Freitas Vale, anunciou na mensagem, apresentada ao Congresso Legislativo, na abertura da 3ª reunião de sua legislatura, no dia 7 de setembro daquele ano malogrado, a delicada situação da economia paraense. Disse, em linguagem empolada: “conhecedor que sou minucioso das finanças do nosso Tesouro, onerada com uma velha e grande dívida consolidada externa e interna, cujos totais serviços de juros e amortização não temos podido – e devemos confessá-lo sinceramente – manter em dia, e ainda por uma antiga dívida impropriamente chamada flutuante, pois que é verdadeiramente quase toda corrente, constituída por longos antigos atrasos”.

O historiador José Leôncio Siqueira diz que a situação do Pará era resultante de enormes empréstimos contraídos com bancos estrangeiros a partir do Governo Republicano. Desde o final do século XIX, apesar de o Estado viver o áureo ciclo da Borracha, a produção extrativista do látex parecia ser insuficiente, absorvida rapidamente pelos absurdos gastos, banalmente justificados. Ele ressalta que ninguém foi capaz de prever o final do período tão abundante. Siqueira pontua que o declínio, de fato, intensificou-se com o início da Primeira Grande Guerra.

O famigerado contrabando das mudas de seringueiras para a Malásia, sob domínio inglês, foi definitivo para os investidores deixarem de lado a cadeia produtiva dos seringais amazônicos. O ano de 1912 foi um marco para a derrocada do que ficou conhecido como “Belle époque”. “Com uma arrecadação incapaz de atender os seus compromissos, o Pará tampouco precisou da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque para justificar a sua situação”, diz José Leôncio, acrescentando que a crise mundial, na verdade, só fez piorar um quadro agudo de declínio financeiro em Belém e em todo o Estado.

O branco que sua família merece, direto da Europa

A lenda de que as famílias mais abastadas cometiam excessos torrando o dinheiro ganho com exploração dos seringais amazônicos se sustenta no volume de dólares circulando pelas duas principais cidades da região na segunda metade do século XIX: Belém e Manaus. O historiador José Leôncio Siqueira ressalta que a época foi marcada por mudanças radicais na então Província do Grão-Pará. A modernidade havia chegado sobre os trilhos da estrada de ferro, iniciada em 24 de junho de 1873. O Theatro da Paz se destacava majestoso, já em 1878, e a capital da província era considerada a terceira praça comercial do Império, sendo chamada de “Liverpool Brasileira”.

A elite paraense deu um tempo nas festas religiosas e começou a se “civilizar” em reuniões sociais, bailes, concertos, bilhares e cafés. Uma curiosidade do período, garante Leôncio, está registrada na forma de se expressar votos de sucesso: “merdas! Muitas merdas!”. Ele diz que a inusitada saudação vem do uso das charretes e carruagens à tração animal. Quando havia espetáculos no Theatro da Paz, os paralelepípedos das proximidades ficavam cobertos de fezes deixadas pelos cavalos. Quanto mais excremento na rua, mais sucesso havia obtido a apresentação, dando origem ao elogio que mais parecia xingamento.

O historiador não apresenta evidências da lenda de que os abastados belenenses mandavam suas roupas para lavar na Europa. Porém, ele diz que é perfeitamente possível em um momento tão contagiante, em que o dinheiro corria solto e há história dos charutos acendidos com notas de cem dólares. À época, os endinheirados mandavam seus filhos para estudar no Velho Continente, principalmente na França, até porque o ensino superior no Brasil era uma fábula distante. Pode ser que o exagero tenha falado mais alto de que, além dos rebentos da elite de Belém, algumas trouxas tenham atravessado o oceano para serem alvejadas nas lavanderias finas de Lisboa, Paris ou Londres.

Vai um guaraná aí?

Quando o assunto é a falência da gigante Coca-Cola em Belém, uma névoa de mistério se fecha mais ainda em torno da lenda de que a multinacional teria ido à bancarrota na pacata Belém de 1960, com suas mais de 20 marcas de refrigerantes locais, como: Soberano, comercializado até hoje e o Guarasuco, que virou sinônimo de popularidade nessa época: “Guarasuco está em todas!”. Os mais velhos dizem que por um tempo a capital paraense ficou desassistida do líquido negro e borbulhante. Para encontrar a sinuosa garrafinha da marca mais famosa no mundo, somente nas viagens para o Rio de Janeiro pelos aviões da Panair.

Quem comenta sobre a falta de Coca-Cola em Belém é o professor da Faculdade de Arquitetura da UFPA, Flávio Nassar. Ele pesca na memória a história de que a cidade ficou sem o produto, mas não sabe especificar muito bem a época. Para ele, no entanto, não fazia muita diferença, afinal, naquele tempo a publicidade sobre o refrigerante-símbolo do capitalismo não era tão invasiva e outros rótulos faziam a cabeça dos garotos belenenses. Informações oficiais dão conta de que a Companhia de Bebidas Paraense, a Compar, existia desde 1970, e nasceu como uma fábrica moderna e bem preparada para encarar o mercado competitivo de engarrafados no Pará.

Em 1974, o primeiro grupo empresarial responsável pela indústria de engarrafamento vendeu o empreendimento para o grupo Simões, que já trabalhava no ramo em Manaus desde 1970. Até hoje são eles que engarrafam a Coca-cola e seus produtos na região Norte. No entanto, o boato que origina a falência da multinacional em Belém é anterior à essa época.

As informações são desencontradas, mas levam a dois caminhos comuns em meio à boataria. Um de que a famosa marca norte-americana teria sido sumariamente ignorada pelos consumidores paraenses na primeira empreitada de se estabelecer no mercado regional, ainda nos idos de 1960. O outro é de que tropeços administrativos ou falta de consenso entre os primeiros franqueados, teriam encerrado o negócio promissor e resultado no fechamento da fábrica primordial que, dizem, estava instalada em algum ponto da Travessa Lomas Valentinas, no bairro do Marco.

Ainda que sem confirmação segura, mas com várias histórias no mesmo tom, Belém fica com a pecha de ser a única cidade do mundo em que a Coca-Cola “faliu” - mais uma para o leque da coleção de improbabilidades possíveis da capital do Pará.

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