Santa chuva

Fenômeno natural dos mais frequentes em Belém, a chuva faz parte da história dos paraenses e motiva lembranças.

07/11/2013 17:03 / Por: Bruna Valle/ Fotos: Ana Mokarzel
Santa chuva

Em Belém, quase todo dia é dia dela. Quem não sai de casa com o famoso guarda-chuva sabe bem que ela é imprevisível, embora seja certa sua participação no cotidiano dos moradores da capital paraense. O poeta Paes Loureiro falou dela em um de seus poemas, o " Mangueiras de Belém": "Ai! Cidade das Mangueiras! Quem te vê e não te ama? Tua leve melancolia presa em gaiolas de chuva"...

Esse fenômeno natural que embala o sono tranquilo de muita gente tem uma explicação técnica bem definida. Segundo o especialista em meteorologia Marcio Lopes, a localização geográfica da cidade contribui para a frequência da incessante chuva. “Com relação à sua posição, Belém está às margens da baía do Guajará e muito próxima do oceano. Essas grandes massas de água jogam na atmosfera um elevado teor de umidade. Não obstante, a predominância dos ventos faz com que estes soprem em direção à cidade, trazendo mais umidade, tanto do Atlântico, quanto da baía”, explicou.

O que também facilita a incidência do cotidiano regado à chuva é a proximidade da cidade com a Linha do Equador. Marcio destacou que há o “recebimento de elevada quantidade de radiação solar o ano inteiro, ou seja, há energia ao longo de todo o ano para ativar os sistemas meteorológicos, como as nuvens de chuva, por exemplo”. E essas características não são exclusivas de determinadas épocas do ano, já que não são bem definidas as estações no norte do país, mas o calor e a umidade que temos de sobra por aqui são o combustível necessário para formar nuvens de chuva mais vigorosas, seja no inverno amazônico (estação chuvosa), seja no verão amazônico (estação menos chuvosa).

Ciências à parte, a chuva divide sentimentos: tem gente que a vê com bons olhos; tem outros que saem correndo, praguejam e ficam aborrecidos quando ela vem. Mas, como tudo tem seu lado bom, algumas histórias especiais são estreladas por ela, e seus admiradores sentem um afeto especial pelos pequenos fragmentos de água caindo sobre suas cabeças. O site da Revista Leal Moreira conversou com alguns deles e conta um pouco do que eles sentem quando a chuva se anuncia.

Aída Neto, 24, bancária, atualmente mora em São Paulo, mas viveu praticamente a vida inteira em solo paraense - e por isso não só conviveu com a chuva da tarde como tem uma paixão nostálgica pelos momentos em que o chuvisco caiu em seu rosto musicalmente. “A chuva é bem especial pra mim, eu gosto de me molhar. Já deitei diversas vezes no chão do meu quintal enquanto caia a chuva, só pra sentir os pingos na cara”, relembrou.

Para Aída, a hora da chuva é um bom momento para se refrescar aqui. Ela perdeu as contas de quantos episódios da sua vida a tiveram como cenário, embora ainda tenha algumas memórias inesquecíveis. “Acho que não houve só um momento especial com a chuva de pano de fundo, mas vários. Os que mais me marcaram foram as tardes que eu corria pro parquinho do condomínio com meu irmão e sobrinho. A gente amava brincar tomando banho de chuva”, contou.

Morando em São Paulo, onde o clima é bem diferente do amazônico, ela sente a diferença e nutre uma saudade imensa de sua terra natal. “Agora que moro em São Paulo, percebo o quanto a umidade do ar de Belém, o seu rio, a sua chuva me fazem falta. Aqui o clima é seco demais e quando chove dá até medo de abrir a janela. Eu cresci com muita água ao meu redor. Os pingos caindo eram como uma canção de ninar, e eles me fazem bastante falta”.

Para a atriz Alyne Góes, a chuva é como um calmante que a própria natureza fornece para as almas mais inquietas. A começar pelo vento forte e terminar nas incontáveis partículas de água que se misturavam, na sua infância, à terra alaranjada que compunha a rua em que morava. “Minha infância é regada pela chuva que caia em Ananindeua e Belém. A chuva se misturava ao pó cor de barro das ruas, e eu amava a cor que deixavam em meus pés. Passava a brincar com ela e a cor durante as tardes”.

Está chegando a época em que ela se intensifica em Belém - às vésperas do Natal, os temporais que banham a cidade ficam intensos e mudam a rotina da cidade. Em tempos idos, a sensação era a mesma. Alyne conta que era neste período do ano que “ficava boba a olhar as ruas, elas sempre ficando largas demais... Quando chovia, chovia muito forte, e era chuva gorda, ela sempre  molhava as sacolas e o 'bons velhinhos de vermelho'. Eu achava tudo aquilo engraçado, achava engraçado também chover manga junto, e também perigoso. Mas sempre voltava com a mochila cheia de mangas...”.


Com o tempo, a atriz foi crescendo. Já adulta, começou a reparar ainda mais nas recorrentes chuvas que sempre a encontravam pela cidade. Por vezes, ela se anunciava com pequenas rajadas de vento. Por outras, simplesmente caía de repente como se quisesse desacelerar a vida. “Eu aprendi a andar ao lado dela, nos dias mais corridos... E de quebra acabo sempre por tomar mais vitamina C. Às vezes, por esses dias, ela vem como alerta e diz ‘Alyne! Mais calma, meu bem, o mundo não acaba hoje! Nem amanhã! Ande, não corra!’. Daí eu ando e repenso tudo, o itinerário do dia, quem eu encontro no caminho, quem eu não encontro e deveria encontrar...”.

As mangas que coincidem com os pingos também têm algo de especial. Quando a chuva deixa todos esperando em algum ponto protegido, Alyne - além de fazer desses momentos de espera uma pausa de reflexão - ainda guarda os pequenos presentes que,  de certa forma, caem do céu. “Quando a chuva é tanta, resolvo mesmo parar. Sento em alguma calçada e observo ela molhar tudo em volta. Quase sempre acabo em minha cabeça voltando a sujar os pés de barro. Quando ela vai ficando mais branda, levanto, ponho a mochila ao lado, e saio a caçar mangas. Subo no ônibus sempre com a mochila um tantinho mais pesada...”.

Se ainda falta poesia e arte para todas estas memórias de chuva,  a fotógrafa Ana Mokarzel tem a cereja do bolinho de chuva. Com seis anos captando os melhores e mais significativos momentos que a rodeiam, Ana revelou que, embora a maioria dos fotógrafos fuja da chuva, ela saca sua câmera e corre ao seu encontro. “É uma fonte de inspiração pra mim. Ela me passa serenidade, tem algo de bucólico, nostálgico e poético nela... Ao mesmo tempo tem estética, e os reflexos trazidos por ela são absolutamente fotogênicos. Quando ela cai, enquanto muitos guardam suas câmeras, é a hora que gosto de ir para rua”.
A artista lembra ainda de momentos em que não esperava encontrar água no caminho. Ela estava em Portugal, mas a chuva se anunciou majestosa - e quando alguns colegas já iam fugindo dela, Ana interveio: “é agora que poderemos fazer as melhores imagens. Fotografar na chuva é uma outra proposta”. Segundo a fotógrafa, o resultado foi tão positivo que tomou forma e ganhou espaço em uma de suas exposições.  

Ela conta ainda que a chuva daqui traz uma sensação especial, diferente da dos outros lugares que têm as estações do ano bem marcadas. “Onde as quatro estações são bem definidas, a chuva parece mais um transtorno, especialmente no inverno. Mas aqui ela é um alívio! Participei de um vídeo coletivo chamado 'Belém Transpira', onde o depoimento mais comum era: ‘a chuva é uma benção!’”.

Belém não tem registro de ter um mês inteiro seco, embora o volume pluviométrico já tenha sido baixo em função de outros fenômenos climáticos. Alguns paraenses nem acreditam mais na previsão do tempo que passa na TV. A chuva é pontual e não deixa de aparecer - para estresse de uns, verdade. Mas também para a alegria de muitos outros.

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